Página  >  Edições  >  N.º 93  >  Reduzir, Reciclar, Reutilizar

Reduzir, Reciclar, Reutilizar

O Roberto tantas fez que foi "escorraçado" de outra escola. Chegou até nós na manhã outonal de um dia que ficou célebre por ter sido aquele em que mais alunos acorreram ao posto médico... todos por conta do Roberto.
Contava treze anos e arrastava consigo a fama de "marginal violento e irrecuperável". Muitas tinham sido as noites que havia fugido de casa com medo das represálias do padrasto. Longas lhe tinham parecido as noites frias em que havia dormido dentro de carros abandonados em esconsas vielas.
"Irrecuperável" diziam ser. Até que, por meados de Outubro, se dignou aparecer na escola adoptiva, ao cabo de vários dias de gazeta. Tresandava a suor, cambaleava, não aparecia em casa há tanto tempo quanto o que faltara à escola.
Uma professora perguntou-lhe porque mancava. Após um sussurrado insulto à professora e uma ligeira hesitação, conseguiu-se que o Roberto se sentasse num banquinho da cantina e se descalçasse. Pedaços de feridas ficaram agarrados à bota e a restos de peúga. As crostas infectadas ficaram coladas a imundos fiapos de jornal. O Roberto tinha os pés ensanguentados, em chagas.
Ao fim da tarde, avisado pela escola, o padrasto aguardava o Roberto no portão. Recordo-me de o ver furibundo, a escaqueirar o guarda chuva contra o passeio, porque os professores não consentiram que desse uma "poleia" exemplar no enteado e logo ali, para dar o mote à que o esperava quando chegassem a casa. "Porrada velha com o cinto e do lado da fivela", como nos afiançava o Roberto que não iria deixar de apanhar.
Muitas porradas e muito planos de fuga mais tarde, algo "reduzida" a raiva que trazia à chegada, o Roberto desabafou outras revoltas.
Quando, um dia, lhe perguntámos porque estava com olhos encovados, respondeu que, na noite anterior, a mãe tinha "aviado muitos clientes" e que o último tinha saído já de madrugada. Como a casa só tinha uma divisão, o Roberto tinha passado metade da noite sentado na soleira da porta.
Noutra ocasião, contou-nos um segredo. Dois anos antes, a mãe dissera-lhe que o "padrinho" tinha uma menina de seis anos, que era "meia irmã do Roberto". Moço de rua e de muitas andanças, o nosso Roberto não tardou em chegar à fala com a "meia irmã". Mas quando numa das esporádicas visitas do "padrinho" lá a casa lhe pediu para brincar com a sua "irmazinha pequeninha", foi proibido de se aproximar sequer da menina:
- Nem pensar! Ouviste? Ai de ti, meu malandro, se a minha mulher me dá queixa de ti!
Em Agosto, a "irmãzinha pequeninha" morreu atropelada. E, todos os dias, pelo fim da tarde, o Roberto ia até ao cemitério. Roubava umas flores pelo caminho, pousava-as no mármore frio e ficava para ali sentado, a cabeça entre as mãos.
- Às vezes até choro, professor! De raivoso! E juro: quando for grande, vou comprar uma pistola e vou matar o meu padrinho!
O Roberto nunca cumpriu a jurada vingança. Mas o processo de passagem de uma reciclagem das emoções à reutilização dos afectos ainda iria levar algum tempo.
Sexta- feira, reunião de Assembleia, um rol de queixas no "Acho Mal" e todas dirigidas ao mesmo colega: o Roberto (quem havia de ser?). O tribunal teria de reunir.
O "advogado de ataque" foi demolidor no libelo acusatório. A advogada de defesa começou a argumentação de um modo pouco habitual, perguntando:
- Vós não andais na catequese?
Em uníssono, as crianças anuíram.
- E, então, como é? O Roberto isto, o Roberto aquilo... Toda a gente diz que o Roberto é mau. E alguém o tem ajudado?
A Assembleia dividiu-se entre os que abanavam a cabeça e os que olhavam para os pés...
A advogada de defesa continuou:
- E também já todos leram a "Fada Oriana", não leram?
Aqui chegada, a pequena advogada sentiu ter a assembleia na mão, todos os putos tinham entendido a "mensagem". Os adultos, como são mais lentos de raciocínio nesta coisas, é que ainda não tinham entendido, apesar de terem lido também o livrinho da Sophia. Mas logo a advogada de defesa rematou:
- O Roberto não precisa de castigo. O Roberto precisa é de uma Fada Oriana!
Nesse dia, ficou decidido que o Roberto fosse ajudado por "fadas e fados orianos". Nos dias que se seguiram, se o Roberto esboçava um tabefe num colega, logo uma fada Oriana se interpunha entre a potencial vítima e o Roberto, enquanto perguntava:
- O que tens, Roberto? Estás doente?
E logo o Roberto suspendia o gesto. Se bem que não levasse muito tempo até que outro fado Oriano o interpelasse, antes que a pedra que (por acaso...) aparecera na mão do Roberto atingisse o alvo:
- Olha, tens alguma coisa? Precisas que te ajude?
E logo o Roberto devolvia a pedra ao lugar de origem. Assim se cumpria a ecológica recomendação que nos diz ser necessário reduzir, reciclar e reutilizar. O que resulta na Natureza resulta naturalmente nas crianças, que, como dizia o poeta, ainda são o que de melhor a Natureza tem.

José Pacheco
Escola da Ponte / Vila das Aves


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 93
Ano 9, Julho 2000

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo