* * Texto produzido a partir das discussões desenvolvidas nas sessões do Seminário de Orientação do Programa de Doutoramento em Ciências da Educação da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação/Universidade do Porto, sob a coordenação dos Profs. Drs. José Alberto Correia, Manuel Matos e Amélia Lopes. Não parece ser necessário empreender muito esforço analítico para se identificar, na vida político-social das sociedades contemporâneas, uma série de chavões que, fazendo aqui um paralelo com a formulação dos especialistas especialmente especializados do Professor José Alberto Correia, poderíamos dizer que se apresentam como unanimidades unanimente unânimes. O "consenso" está em toda a parte. Ele se chama "Estado Mínimo", "Estado Regulador", "globalização", bem como "eficiência", "flexibilidade", "qualidade" - que tem que ser "total" - ou ainda "inclusão" que, paradoxalmente, quer incluir não desiguais, posto que desigualdade não reconhece. Neste universo de unanimidades unanimente unânimes, curiosamente, muitas vezes, o dito é repetido sem que compreendido seja, visto não se explicitar o que se encontra por detrás dos chavões. Mas já que toda a gente diz... O reflexo dessa realidade no mundo educativo é directo. Nele também os "consensos" emergem. É assim, por exemplo, que nos últimos tempos se tem verificado uma convergência de discursos no sentido de se estreitar as relações entre o Sistema Produtivo e o Sistema Educativo, tendo ainda uma interferência crescente de sectores exteriores a este último nas decisões tomadas em seu interior (Correia et. al, 1993). Dessa forma, a educação é definida conforme os horizontes do Sistema Produtivo. Num tempo de lógicas conexionistas, conecta-se a Escola ao mercado de trabalho, tendo ela uma única função: preparar mão de obra, em nome do desenvolvimento e da modernização. Esta parece ser uma orientação estruturante das políticas educativas na dita semi-periferia do sistema mundial, onde Portugal está incluído (Santos, 1994) e onde parece que o Brasil deve ser considerado, já tendo este sido definido como o norte do sul. Trata-se, ilusoriamente, de uma espécie de "grande corrida" ao centro, como se no centro existissem lugares para todos. Mas não se poderá acusar os ideólogos do desenvolvimentismo e da modernização, como árbitros da "grande corrida" ao centro, de não se preocuparem com a cidadania. Justiça seja feita. Ela está sempre presente em suas intervenções. É também uma expressão-consenso. Não é difícil encontrar na produção sobre política educativa a articulação trabalho, educação e cidadania. Aliás, esta é uma recomendação de muitas agências internacionais. Uma cidadania para a competitividade. A face problemática da articulação trabalho, educação e cidadania, porém, começa a se revelar, ao que nos parece, quando se faz aquilo que Tomaz Tadeu da Silva e Gaudêncio Frigotto fizeram, isto é, interrogar a mesma não com as palavras do vocabulário da ortodoxia do laissez-faire, laissez-passer, de inspiração neoliberal. Talvez assim a própria categoria trabalho seja melhor compreendida, superando-se a sua perspectiva instrumental, lembrando aqui Habermas. O trabalho, há muito já foi dito, não é um fenómeno uno, mas sim duplo: é actividade de autocriação humana, através da produção de bens materiais como valores de uso, relação de intercâmbio entre o homem e a natureza, sendo ele também parte da natureza; mas, nas sociedades da supremacia do livre mercado, o trabalho assume a forma abstracta de mercadoria, como valor de troca, tornando-se uma força abstracta, sem conteúdo. Os seres humanos transformam-se em nómades do dispêndio de força de trabalho abstracta; como agregados diferenciados, cooperam de forma social, no entanto, em um grau de indiferença e alienação recíprocas; podem satisfazer as suas necessidades apenas indirecta e posteriormente, por via do processo abstracto do automovimento do dinheiro. Poder-se-ia então indagar: destas duas dimensões, qual é a que está a compor a articulação trabalho, educação e cidadania? Da mesma forma, não menos pertinente parece ser um refocar analítico sobre a noção de cidadania. Que cidadania? Eis, de longe, diferente das propagações sofistas de hoje, um tema nada consensual. O Iluminismo atribuiu à cidadania alguns princípios que, mesmo progressistas para a altura (ante o obscurantismo religioso), não deixaram de receber qualificações negativas. Cidadania liberal, abstracta, pois baseada apenas em direitos abstractos: direito de livre expressão, igualdade jurídica... Além disso, revelando o carácter contraditório desta noção de cidadania, o iluminado Voltaire costumava dizer que as massas não eram dignas de instrução, como também teses de Locke (a necessidade de se superar o estado de natureza...) apoiaram às dúvidas europeias, por ocasião da expansão ultramar, no que se referia à capacidade dos povos ameríndios administrarem as suas terras. Que cidadania? A de inspiração neoliberal que, concebendo a cidade construída, associa as estruturações de sociabilidade à lógica do mercado e coloca na mão invisível deste a definição dos destinos de homens e mulheres? Talvez seja esta cidadania que, na busca das parcerias, confunde sociedade civil com mundo empresarial e prefere ver excluídos e não desiguais, pois o que pretende é adequação ao tipo de cidade já construída: inclusão. Falar em desigualdade pode significar que a cidade precisa ser construída. Mais ainda, num movimento de tensão dialéctica, precisa ser construída e reconstruída. A ciência e a tecnologia têm sido concebidas como garantes da modernização, eficácia e produtividade, e a escola, ensinando-as, tem a função de viabilizar o sucesso do processo. E assim a ciência e a tecnologia deixam de ser um património da humanidade e passam a ser uma moeda desenvolvimentista, rubricada pela instituição escolar. Lembranças de Theodoro Schultz, saudades da Teoria do Capital Humano, quando se imaginava que ela, por caduquice, estava superada. Discutindo o papel do computador na educação, e indagando-se se é ele parte da solução ou parte do problema, Michael Apple realça que a retórica da eficiência, da produção, dos padrões de qualidade, da eficácia de custo, da qualificação para o trabalho, da disciplina de trabalho, definida pelos grupos hegemónicos, tem excluído preocupações com o curriculo democrático, com a autonomia do professor e com a desigualdade de classe, de raça e de género (Apple, 1986). Por detrás disso parece se encontrar o pragmatismo que oculta a natureza das opções societais subjacentes à retórica da modernização, sendo reflexo desse facto, por exemplo, a ênfase que se atribui à necessidade de se estreitar as relações entre a escola e a vida activa sem que se explicite o que se entende por vida activa ou a natureza das relações decorrentes (Correia et al, 1993). Ao que parece, o consenso social em torno do binómio escola/vida activa não representa mais do que a subordinação das práticas educativas às chamadas "exigências"/"realidades" do mundo do trabalho, que não só desconsidera as dimensões do trabalho como tende a não entender o mundo do trabalho como mundo do trabalhador. Talvez um dos preceitos analíticos das iniciativas investigativas seja o de não se deixarem encantar pelas unanimidades, mesmo que elas sejam unanimidades unanimente unânimes... Portanto, no caso da temática trabalho, educação e cidadania, não parece ser despropositado tocar uma gaita desorganizadora dos consensos, principalmente quando os consensos estão cobertos de mistificação. Mistificação, por exemplo, que, desconsiderando a dupla dimensão do trabalho, compreende o mesmo apenas em sua forma alienada, onde, acompanhando Gorz (1988), pode-se dizer que predominam as expressões técnicas de uma cultura que é incultura em tudo aquilo que não é técnico e onde o aprender a trabalhar é o desaprender a encontrar, e mesmo a procurar, um sentido para as relações não instrumentais com o meio ambiente e com os outros. Ivonaldo Leite (1)- Sobre as teorias do Sistema-Mundo, ver Wallerstein (s/d) (2)- A este respeito, ver Santos (1994) e Castells (1999) (3) - O Banco Mundial é um exemplo geral; na América Latina, deve ser considerada ainda a Cepal (Comissão Económica para a América Latina e Caribe). Ver Fonseca (1997). (4)- Tomaz Tadeu da Silva, nomeadamente, mostrou, a partir de uma reportagem de um jornal de São Paulo, como escolas desta cidade estavam a transmitir, através de material didáctico, conceitos neoliberais, mais preocupados em justificar as configurações do Estado Mínimo e a "racionalidde" do mercado do que em considerar as implicações que o debate sobre a noção de cidadania exige. Gaudêncio Frigotto, por sua vez, realça como a reestruturação capitalista manifesta-se na educação, descrevendo o carácter neoliberal de muitas medidas das políticas educativas. Ver Silva (1995) e Frigotto (1995). Consultar ainda Torres (1997). (5)- Para uma visão panorâmica da Teoria Crítica de Habermas, ver McCarthy (1995). (6) - Ver Bobbio & Bovero (1996) (7) - Curiosamente, do outro lado do Atlântico, os ameríndios também tinham dúvidas: Eram os europeus enviados dos deuses ou não? E, portanto: deveriam recebê-los bem ou de arco e flecha nas mãos? (8) - A Teoria do Capital Humano foi sistematizada na década de cinquenta, no Grupo de Estudos do Desenvolvimento, coordenado por Theodoro Schultz, nos EUA. A equipa de Schultz procurava descobrir o factor que explicasse, para além dos factores A (nível de tecnologia), K (insumos de capital) e L (insumos de mão de obra), dentro da fórmula geral neoclássica de Cobb Douglas, as variações do desenvolvimento entre os países. Schultz notabilizou-se com a descoberta do factor H, a partir do qual elaborou um livro sistematizando a Teoria do Capital Humano. No Brasil, sob a ditadura militar e no contexto do dito milagre económico, a Teoria de Schultz foi alçada ao plano das teorias do desenvolvimento e da mobilidade social. A formulação schultziana vincula o investimento em educação ao aumento da capacidade de produção. Ver Schultz (1962; 1973), Simonsen (1969) e Langoni (1974). Para uma crítica de sua base constituinte, consultar Frigotto (1984), Carnoy (1987), Salm (1980); para uma crítica do regresso, sob novas formas, da Teoria do Capital Humano, ver Frigotto (1995). Bibliografia
- APPLE, Michael (1986). "O Computador na Educação: parte da solução ou parte do problema?". In: Educação e Realidade, nº 23.
- BOBBIO, Noberto & MICHALANGELO, Bovero (1996). Estado e Sociedade na Filosofia Política Moderna. São Paulo: Brasiliense
- CARNOY, Martin & LEVIN, Henry (1987). Escola e Trabalho no Estado Capitalista. São Paulo: Cortez.
- CASTELLS, Manuel (1999). The Information Age: economy, society and culture, vol I. Massachusetss: Blackwell Publisers
- CORREIA, José Alberto, STOLEROFF, Alan D. & STOER, Stephen (1993). "A Ideologia da Modernização do Sistema Educativo em Portugal". In: Cadernos de Ciências Sociais, nº 12/13.
- FONSECA, Marília (1997). "O Banco Mundial e a Educação: reflexões sobre o caso brasileiro". In: GENTILI, Pablo (Org.) (1997). Pedagogia da Exclusão: crítica ao neoliberalismo em educação. Petrópolis: Vozes.
- FRIGOTTO, Gaudêncio (1984). A Produtividade da Escola Improdutiva. São Paulo: Cortez.
- FRIGOTTO, Gaudêncio (1995). Educação e a Crise do Capitalismo Real. São Paulo: Cortez.
- GORZ, Andre (1986). Metamorphoses du Travail. Paris : Galilee.
- LANGONI, C (1974). As Causas do Crescimento Económico no Brasil. Rio de Janeiro: Hucitec.
- McCARTHY, Thomas (1995). La Teoría Críttica de Jurgen Habermas. Madrid: Tecnos.
- SALM, C (1980). Escola e Trabalho. São Paulo: Brasiliense.
- SANTOS, Boaventura de Sousa (1994). Pela Mão de Alice. Porto: Afrontamento.
- SCHULTZ, Theodoro (1962). O Valor Económico da Educação. Rio de Janeiro: Zahar.
- SCHULTZ, Theodoro (1973). Capital Humano. Rio de Janeiro: Zahar.
- SIMONSEN, Mário H. (1969). Brasil 2001. Rio de Janeiro: ANPEC.
- SILVA, Tomaz Tadeu da (1995). "A Nova Direita e as transformações na Política da Pedagogia e na Pedagogia da Política". In: SILVA, Tomaz Tadeu da & GENTILI, Pablo (Orgs) (1995). Neoliberalismo, Qualidade Total e Educação. Petrópolis: Vozes
- TORRES, Carlos Alberto (1997). "Estado, Privatização e Política Educacional: elementos para uma crítica do neoliberalismo". In: GENTILI, Pablo (Org.) (1997). Pedagogia da Exclusão: crítica ao neoliberalismo em educação. Petróplois: Vozes.
- WALLERSTEIN, Imanuel (s/d). O Moderno Sistema Mundial, 3 volumes. Porto: Afrontamento.
|