Reflexões em Torno da Rede Nacional de Educação Pré-Escolar
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A educação pré-escolar desenvolveu-se em Portugal num momento sócio-político fortemente influenciado pelo contexto internacional. Neste contexto, dada a crise do Estado-Providência, proliferaram lógicas divergentes ao nível da formulação das políticas públicas de bem-estar social. Actualmente assiste-se na Europa a um debate acerca do papel do Estado e da Sociedade na garantia dos direitos sociais que, em alguns países, tem levado a uma redefinição do papel do Estado e, no campo da educação, a uma aproximação dos domínios das esferas pública e privada. No que se refere às políticas educativas, em Portugal, estas têm sido caracterizadas pela sua "natureza híbrida" sendo atravessadas simultaneamente por preocupações baseadas em princípios de competitividade e de cidadania (Afonso, 1999). Num trabalho por nós desenvolvido (Vilarinho, 2000) onde se analisa o papel do Estado na definição e desenvolvimento da Educação Pré-Escolar, tendo por base o discurso oficial produzido nos últimos vinte anos (1977/1997), identificamos três períodos ? Criação, Normalização e Expansão (1977-1986) / Retracção (1986-1995) / Revitalização? (1995-1997). Este trabalho permitiu-nos concluir que, nas últimas duas décadas, o Estado tem remetido para si os papeis de "mobilizador" de diversas iniciativas da Sociedade Civil e de regulador, desvalorizando o papel de "promotor" directo de jardins de infância públicos. A publicação da Lei-Quadro da Educação Pré-Escolar (lei nº5/97 de 10 de Fevereiro) vem reforçar esta perspectiva política de desvalorização ao redefinir o conceito de rede educação pré-escola. Este conceito passa agora a integrar os jardins de infância das redes pública e privada que são complementares entre si, e introduz as condições para a intervenção estatal nos estabelecimentos pré-escolares, nomeadamente através da assunção da tutela pedagógica pelo Ministério da Educação e de novos mecanismos de avaliação e supervisão. Como advertimos no estudo referido, no nosso estudo a tendência para a desvalorização do papel do Estado enquanto promotor directo introduz alguma fragilidade no direito de acesso das crianças à educação pré-escolar e revela alguma aproximação à ideologia neo-liberal de educação. De facto, existem discursos políticos que acentuam os direitos à liberdade de escolha parental dos estabelecimentos, que defendem o acesso a uma educação de qualidade, que solicitam a participação da sociedade civil nas iniciativas pré-escolares. Decorre destes enunciados a valorização da pluralidade da oferta de serviços. A lei-quadro da EPE consagra algumas conquistas no que concerne ao direito das crianças à educação pré-escolar: - Consagra o princípio da gratuitidade da componente lectiva em todas as unidades de educação pré-escolares, sejam elas de natureza pública ou privada. - Impõe o dever ao Estado de "criar uma rede pública de educação pré-escolar, generalizando a oferta dos respectivos serviços, de acordo com as necessidades"; - Prevê que o Estado possa comparticipar os custos da componente sócio-educativa às famílias com necessidades sócio-económicas; - Promove a aproximação gradual do estatuto sócio-profissional dos educadores da rede privada ao estatuto da carreira docentes dos educadores de infância da rede pública, condicionando o financiamento das instituições ao cumprimento deste preceito legal. O Decreto-lei nº 147/97 de 11 de Junho regulamenta alguns dos princípios enunciados na Lei-Quadro. Neste decreto, e no que respeita à estrutura do sistema, surge um novo conceito ? o de Rede Nacional de Educação Pré-Escolar. A finalidade desta rede consiste em "efectivar a universalização da EPE" (Art. 3º 1). Para a sua concretização enuncia a necessidade de se promover uma cooperação institucional entre os Ministérios da Educação e da Solidariedade e Segurança Social, de forma a serem possíveis apoios financeiros quer às famílias quer aos estabelecimentos de educação pré-escolar no sentido de salvaguardar o princípio da igualdade de oportunidades.(1) Tal como já se observou no momento da discussão da lei-quadro continua a existir uma tendência para a despolitização do debate em torno da natureza da rede pré-escolar, já que não se tem contemplado a problematização acerca das implicações que esta rede tem no que concerne ao princípio da igualdade em educação. Por parte das da Instituições Particulares de Solidariedade Social (as que são proprietárias do maior número de jardins de infância privados sem fins lucrativos) nota--se alguma desconfiança relativamente a estas novas medidas, já que, os apoios não aparecem com a celeridade necessária. Uma das nossas preocupações actuais, consiste em saber se as instituições privadas têm capacidades (organizativa, financeira e humana) para assumirem estas novas responsabilidades, (de entre elas a gratuitidade da componente lectiva e a aproximação ao estatuto remuneratório da função pública dos educadores de infância) sem terem de introduzir na administração das suas organizações mecanismos de mercado. No que se refere à EPE, importa então problematizar algumas das fragilidades das IPSSs. Apesar de, como referem Mishra (1999) e Santos (1993), as instituições da sociedade civil poderem desempenhar um papel relevante na consolidação de práticas emancipatórias porque, dada a sua natureza jurídica, terem mais autonomia para adequarem as suas práticas às necessidades das comunidades, neste caso às crianças e suas famílias. No entanto, a autonomia das IPSSs portuguesas é relativa pelo facto de estas dependerem financeiramente do Estado (através da celebração de acordos de cooperação) e das mensalidades pagas pelos utentes. Isto obriga as instituições a regerem-se por normas prescritas pelo Estado e a aproximarem-se das suas práticas organizativas que, como sabemos, são caracterizadas, entre outros aspectos, por uma grande normatividade. Logo, e de acordo com o estudo de Hespanha (1999), as IPSSs manisfestam uma tendência que vai no sentido da burocratização dos seus seviços, sendo grande a probabilidade das IPSSs se tornarem uma extensão da burocracia do próprio Estado. Observa-se ainda uma crescente tendência por um lado, para a exigência para a especialização dos seus profissionais, e, por outro lado, para a uma desprofissionalização dos seus corpos sociais (dirigentes). Este facto introduz uma grande debilidade neste sector. Os profissionais, não detendo poder de decisão, dificilmente conseguem sobrepor a lógica pedagógica à lógica da gestão na administração destas instituições. Estamos, pois, perante um problema que na EPE se reveste de particular importância dado a disputa (ao nível das práticas) entre as concepções educativa e de guarda da Educação Pré-Escolar. Outro aspecto a salientar é que embora uma das grandes finalidades das IPSSs seja a prestação de um serviço de utilidade pública no âmbito do social sem usufruir lucros desses serviços, não obedecem "às racionalidades próprias dos agentes do mercado" (Hespanha,1999: 24). Assim, para a sua sobrevivência elas têm que captar um número suficiente de utentes (ou alargá-lo) que lhes garanta o "plafond" financeiro negociado com o Estado, permitindo assim assegurar os custos da prestação de serviços. Acresce a este problema o facto da tabela de comparticipação do Estado ser uniforme e não ter em conta as diferentes capacidades económicas destas instituições. Daí que, como concluiu Hespanha (1999: 27), as IPSSs são instituições "com uma estratégia de gestão mais orientada pelas regras da sobrevivência económica do que pelas necessidades da população utente". A autonomia financeira destas instituições em relação ao Estado passa pela sua capacidade de gerar recursos próprios, capacidade essa muito reduzida.(2) Este aspecto leva muitas vezes as IPSSs a não cumprirem com os ratios criança/sala previstos no D.L. nº 147 /1997 e, em alguns casos, à selecção (ainda que camuflada) de um público com maiores possibilidades económicas(3)de forma a não correrem o "risco de remercadorização". Assim o princípio associativo-assistencial que está na origem das IPSSs parece esbater-se à medida em que a concorrência aumenta -a rede pública é agora uma forte concorrente dado o alargamento dos seus horários. A desresponsabilização do Estado pode-se repercutir directamente na bolsa dos cidadãos utilizadores produzindo efeitos perversos, entre eles, as desiguais condições de acesso à EPE, podendo também levar a uma polarização do público dos jardins de infância. Postas estas considerações, convém salientar que o que se tem observado na prática é que o princípio da gratuitidade da componente lectiva não está a ser cumprido na quase totalidade da rede privada e que a expansão da rede pública tem sido proporcionalmente inferior à da rede privada. Em suma, teremos que manter alguma vigilância crítica sobre este novo conceito de rede nacional, uma vez que este pode ocultar um descomprometimento do Estado na promoção efectiva da rede pública (gratuita), apesar do discurso político recente apontar para um aumento significativo dos apoios financeiros a ser concedidos às IPSSs. Maria Emília Vilarinho Universidade do Minho. (1) Entendido neste diploma apenas como direito de acesso à EPE.. (2) Recorde-se que, para além do apoio financeiro do Estado, a única fonte de recursos é a comparticipação paga pelas famílias pela frequência das crianças nestas instituições. (3) A comparticipação paga pelos utentes varia em função do rendimento per capita do seu agregado familiar. Referências Bibliográficas
- AFONSO, Almerindo J.(1999). Educação Básica, Democracia e Cidadania. Dilemas e Perspectivas. Porto: Afrontamento.
- HESPANHA, Pedro (1999) "Em Torno torna do Papel Providencial de Sociedade Civil Portuguesa". In Cadernos de Política Social. Redes e Políticas de Solidariedade. Globalização e Política Social, nº1: 13-42.
- MISHRA, Ramesh (1999). "Para além do Estado-Nação: A política Social na era da Globalização". In Cadernos de Política Social. Redes e Políticas de Solidariedade. Globalização e Política Social, nº1:163-192.
- WHITTY, Geoff (1996). "Autonomia da Escola e a Escolha Parental: Direitos do consumidor Versus Direitos do Cidadão na Política Educativa Contemporânea". In, Educação, Sociedade e Culturas, nº 6:115-139.
- SANTOS, Boaventura, S.(1993). "O Estado, as relações salariais e o bem estar social na semi-periferia: o caso português". In Boaventura S. Santos (org.) Portugal um Retrato Singular. Porto: Afrontamento.
- VILARINHO, Mª Emília (2000). Políticas de Educação Pré-Escolar em Portugal (1977/1997). Lisboa: Instituto de Inovação Educacional.
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Ficha do Artigo
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Edição:
Ano 9, Julho 2000
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Autoria:
Departamento de Sociologia da Educação e Administração Educacional da Univ. do Minho
Departamento de Sociologia da Educação e Administração Educacional da Univ. do Minho
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