Na morte recente de Alexandre Pinheiro Torres, que pelo Porto viveu algumas das suas peregrinações antes de se radicar em Cardiff e aí conhecer o fim após mais de trinta anos de uma quase cidadania britânica, mesmo que não deixasse nunca de escrever em português, é ainda muito agradável reler este romance Espingardas e Música Clássica, que foi escrito em 1962 e levou vinte e cinco anos a ser publicado, porque em tempos salazaristas não seria fácil nem cómodo pôr a circular um romance que começou a ser escrito (ou a vida do juiz Tadeu de Albuquerque assim se "redescobriu" nesse dia) em 19 de Dezembro de 1961, exactamente no mesmo dia em que a União Indiana invadiu e ocupou em definitivo, sem nenhum espanto do Mundo, as possessões da chamada Índia Portuguesa (Goa, Damão e Diu), quase não se ouviram tiros devido a um poisar de armas calmo, desinteressado e talvez pouco patriótico, disseram, por ser realmente escasso o número militares e marinheiros que se poderiam opor à invasão. Assim, toda a acção narrativa deste romance de Alexandre Pinheiro Torres se conclui em 2 de Janeiro de 1962, aquando do assalto ao quartel de Beja, porque a Emissora Nacional não deixou de emitir ao longo de todo o dia música clássica para suavizar ou esconder a verdade dos tiros desferidos e o juiz Tadeu estranhava muito que fosse então possível escutar a "Morte e Transfiguração" de Richard Strauss em memória de quem caíra baleado pela força das espingardas. Mas todo o romance se coloca num paralelismo literário e romanesco com Amor de Perdição, nessa forma de herança ficcionista camiliana de que Pinheiro Torres muito se reclama nos romances que publicou e com maior incidência em Sou Toda Sua, Meu Guapo Cavaleiro (1994) ou neste em que se repetem os nomes das personagens de Camilo e onde toda a intriga se constrói, não tanto em redor de um "amor de perdição" e antes de um amor de salvação ou de libertação, porque Teresa e Simão se emancipam por outros interesses e sobretudo porque o clima narrativo ou os quadros em que a acção se desenrola têm entre si um intervalo temporal com mais de cem anos. Porém, o propósito de sobrepor personagens e situações numa forma paradigmática de o leitor saber e conhecer que o próprio romance de Camilo ainda é muito lido nas paragens para lá do Marão, se por um lado facilita a complexa trama ficcional do romance, por outro talvez avise o leitor de que a verdadeira ficção se constrói sempre a partir da própria realidade e a grande razão para criar um romance é ainda a verosimilhança da sua história, intriga e enredo romanesco. E por isso Alexandre Pinheiro Torres se encarrega de prevenir o leitor, dizendo num dos primeiros capítulos do romance: "O autor que conta a história que o leitor terá a paciência de levar até ao fim avisa, neste passo, que não acredita em sonhos. Nem crê que um romance seja uma adivinha. É suficientemente ingénuo para estar convencido de que tudo se tem de basear em factos. Ora o mais visível e mais palpável para as gentes de Ribatâmega era a paisagem. E, depois da paisagem, também o facto de o povo que por ela se dispersa não a ver se não como uma personagem com a qual permanentemente dialoga" . Ora, reside aqui a questão maior e mais antiga que o romance coloca: a de se saber se importa mais a forma do que o conteúdo, porque o Autor, mesmo com a intenção bem camiliana de retratar uma outra "realidade", quase parece perder de vista que estava a escrever um romance e não uma obra monográfica de costumes ou de ritos de uma fidalguia de velha cepa talvez em decadência, mesmo que derive em linha recta de dom João III, o Piedoso. Mas também julgamos que, na linha temática e problemática de outros romances e com a persistente e reconhecida experiência de crítico e ensaísta, o que Pinheiro Torres procura fazer é sobretudo a denúncia de velhos hábitos, estabelecer uma dialéctica entre o real vivido e conhecido e na própria fragmentaridade das histórias que narra querer ainda proclamar, como afirmou em tempos num dos textos "teóricos" de Ensaios Escolhidos, que "o romance acaba porque a burguesia está no fim, porque a sociedade que tornou possível o romance está a desaparecer. Mas o fim de um "tipo de sociedade" é apenas o sinal do início de outro diferente" Mas, pelo sentido denunciador das suas histórias desde a revelação de A Nau de Quixibá até ao seu último romance, passando por Tubarões e Peixe Miúdo (1986) e O Adeus às Virgens (1992), o que mais importa salientar na ficção narrativa de Pinheiro Torres é a sua visão irónica e nostálgica de revisitar outros tempos, lugares e gentes, não como forma de saber olhar de longe o que foi o seu percurso literário, mas desejar, numa prosa vernácula, castiça e vibrátil, traçar a nossa "realidade" social e humana em todos os seus planos, não com o sentido de uma pura "invenção" camiliana e antes com o "realismo" visual e literário de um Eça, que tudo sabe fixar e determinar para dar da nossa identidade um quadro muito sério e profundo do que afinal tem mudado tão pouco no correr dos séculos. E, sendo Espingardas e Música Clássica um romance escrito em tempo de silêncio e de mordaça, melhor se entende que passados quase quarenta anos sobre a sua escrita seja hoje um livro de ficção que se lê como forma de retratar uma verdade social e política com todos os altos e baixos, nos mandos e desmandos de toda a espécie, e nessa atitude literária de reinventar a realidade vivida em tempos salazaristas, quando o mundo parecia ter parado em nosso redor e a verdade se não alargava para lá do pequeno "quintal" ibérico em época de tantas amarguras. Ora, tudo isso é dado no romance de Alexandre Pinheiro Torres com a força da razão e não apenas como forma de verdade ficcionista para reinventar ou redescobrir antigos fantasmas, servindo-se da sua carga irónica e mordaz para determinar os sinais de fogo desse tempo português, no contraponto ou propositado paralelismo camiliano. Mas, na variedade das figuras e situações que atravessam o romance, é evidente que o autor de A Nau de Quixibá sabe articular muito bem toda a intriga romanesca para, como acentua Luís de Sousa Rebelo no seu prefácio a esta edição, "dentro da grande tradição clássica da narrativa portuguesa nos dar um romance de verdadeira e genuína modernidade", que se lê com redobrado prazer por se afirmar como "a história de um amor de libertação, um romance serenamente optimista, de raíz lírica e comovida ante os segredos e os desafios do futuro". Por isso, na releitura deste Espingardas e Música Clássica, sabemos como nos deixa fundas saudades a partida para sempre de Alexandre Pinheiro Torres, mas fica connosco uma admirável obra literária que se reparte pela poesia, ensaio e ficção e é sem dúvida das mais relevantes da literatura portuguesa dos últimos trinta ou quarenta anos. Serafim Ferreira Alexandre Pinheiro Torres ESPINGARDAS E MÚSICA CLÁSSICA Ed. Caminho / Lisboa.
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