Relembrando (ainda) o que sobra da mitologia do tempo passado, em Abril revisitado na releitura do romance Ora Esguardae de Olga Gonçalves (Ed. Caminho, 1990), pelas palavras de ordem que se gritaram nas ruas das cidades, podemos ainda perguntar de que tempo nos chegam essas palavras, se esse não foi um tempo de euforia e denúncia depressa sufocado no meio de tantos enganos. Mas, no entusiasmo colectivo de se ter andado por muitas partes e lugares, manifestações e comícios de apoio e protesto, de alegria e liberdade, sabemos hoje que foram vários os avanços e recuos da revolução de que já mal se fala ou nos lembramos, os passos dados para emendar o rumo da História e impor então uma nova ordem na antiga que fora abalada e demorara tantos anos. Mas depressa chegou o desencanto no levantamento de tudo o que era gente cheia de raiva e sentida violência: quantos sonhos se perderam?, quem trouxe essa alvorada e logo consentiu que a ordem fosse enfiada no túnel de outros desesperos?, que prepotências foram cometidas em nome de quê e de quem? Claro, não se divisa a resposta, toda a euforia rapidamente se varreu do nosso olhar neste reino pobre e sem emenda: disso todos nos recordamos e ninguém ao certo pode dizer como a revolução se apagou de forma tão fugaz e insidiosa, nas portas que se abriram e nas ilusões por redimir, talvez porque a alegria não podia ser deste mundo e só nos restava dessas palavras a imagem dos cartazes ou autocolantes onde se proclamava uma impossível comunhão de classes, mas grande grande, muito grande e sincera, sim, era (ou foi) a alegria de muita gente em protestos que ressoaram por várias partes, nesses dias de sol e de liberdade, num primeiro primeiro de Maio que nunca se repetiria com o mesmo comum entusiasmo, cravos e bandeiras rubras se agitaram em festa pública que desejava alterar o rumo da História - Fascismo nunca mais / Fascismo nunca mais -, mas de súbito nos lembramos de quem não teve razão, de quem sofreu e se perdeu, como essa aventura foi sol de pouca dura no amanhecer triste de Novembro. E proclama-se agora que ninguém nos redimiu no triunfo último da vida, quase não serve de nada falar do que se passou e difícil é entender como as coisas, lugares e pessoas se perderam no caminho. Mas a verdade é que no que sobrou dessa vontade espalhada pelas ruas e fábricas, cidades e aldeias, sabemos como a direita adormecera no pânico de muitas manifestações que davam sinais de uma nítida viragem à esquerda. E assim a revolução avançou no pulsar das ruas e da festa que por toda a parte estalava, apressado e mal comprometido era o seu ritmo, muitos espreitavam desde o começo o instante de entrarem noutra carruagem, não poupariam forças nem dinheiro, claro, porque nas contradições havidas, nos excessos e caminhos cortados a direito, depressa se pôde arrumar a descolonização e pôr termo às guerras de África, na recordação de milhares de mortos alinhados em anos de lutas e guerrilhas e de quem agora se sabem todos os nomes no memorial erguido em Belém bem perto de onde partiram as naus na descoberta de outras Índias. E assim, no espanto súbito dos cravos vermelhos e na alegria renascida através de trovas e canções soltas nos ventos de liberdade, outras fronteiras se abriram para quem desejava entrar na festa. E por isso (ainda) nos resta memória clara e nítida de outros dias tumultuosos de Abril e Maio, talvez no receio de que a revolução alastrasse como peste e praga por outras paragens. Ora, tudo isto nos ocorre na releitura deste excelente romance de Olga Gonçalves, uma autora bastante afastada da cena literária para o espaço ser ocupado por quem não tem de longe a mesma qualidade literária (mas as ritas ferro, as marias roma e outras têm a arte e o segredo de se colocarem em bicos de pés ou de impingirem gato por lebre como tantas vezes sucede neste comércio das letras, valha a verdade), porque pela fragmentação narrativa em que Ora Esguardae se estrutura se pode reler essa memória de Abril de todo não perdida nem esquecida. Assim, como um aedo de outros tempos, Olga Gonçalves dispõe-se a falar dos factos passados como se estivessem ainda presentes ou tivessem ocorrido num tempo tão perto e tão afastado dos nossos dias. E, na propositada arquitectura romanesca de Ora Esguardae, sobressai esse fresco de memórias que, como ecrã aberto diante dos nossos olhos, obriga a rever imagens desses tempos de Abril perto e longe de nós, nos faz relembrar nomes, factos e lugares históricos que fizeram a história do nosso quotidiano sentido nos diferentes planos em que tudo se confunde ou se envolve, por serem muitas as sombras desse tempo passado que a autora rememora com o sentido denunciador de tudo fazer surgir à tona da narrativa, como painel literário rico de memórias que se misturam, mesmo na aparente cronologia dos acontecimentos ou no rigor das personagens/figuras desses factos, nas palavras de ordem ou conflitos que se esboçam, na lembrança de Albano e Gracinda, Elza e Miguel, mesmo na recordação de Angora na figura de Bibola, presença e memória de outras lutas. Mas na intenção denunciadora de tudo querer lembrar e nada poupar, o que perpassa em Ora Esguardae é a intenção de Olga Gonçalves desejar emendar o rumo da História, não pelo que há ainda a emendar, mas sobretudo pelo que se desviou do caminho inicialmente traçado e é hoje tão-só a memória (revisitada) de uma realidade que em pouco se alterou, mesmo para lá das evidentes mudanças que alteraram o país de um a outro extremo desta faixa continental. Romance-testemunho de um tempo vivido por dentro, na sinceridade combativa de se afirmar cronista de um tempo de grandes sobressaltos sociais, culturais e políticos, Ora Esguardae tem a força literária de um claro depoimento pessoal e também se afirma como a "memória" viva e precisa dessa revolução que ficou por fazer, porque desandou noutro sentido, muitos foram os danos e enganos em espíritos pouco voltados para as doutrinas da liberdade, e o que parecia firme na viragem da história não passara afinal de um balão de ensaio para outros projectos e vontade de poder. E, ainda na lembrança camiliana de outras revoluções, podemos agora dizer, na passagem de mais um ano sobre a Revolução de Abril, como "muitos se arrancharam na montaria que fizeram", é verdade, discursos e mais discursos, comícios e mais comícios, ainda na lembrança dos desfiles tão certos e coloridos, participados numa sincera alegria colectiva, palavras e gritos de protesto pelo Terreiro do Paço ou Avenida dos Aliados, mas no prazer e proveito evidente de quem pode agora esfregar as mãos de contentamento. Por último, dizer que, na releitura entusiástica deste romance de Olga Gonçalves, o que nos resta é ainda o prazer de pelo texto ficcional se poder reinventar essa memória de Abril nos passos e lugares que foram do nosso entusiasmo. E isso basta para declarar que Ora Esguarde é, no plano da prosa de ficção, um dos testemunhos mais vivos dos acontecimentos de Abril de 74, na verdade e rigor da expressão e no propósito de à sombra tutelar de Fernão Lopes de uma outra revolução revisitar esses factos e lugares, nomes e palavras, vozes e protestos que ficam na expressividade da criação literária como um momento de grande registo na nossa moderna ficção dos últimos vinte anos. Serafim Ferreira Crítico Literário
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