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José Jorge Letria - Biografado

Uma biografia começa sempre por qualquer lado: o que importa é demarcar os passos dessa peregrinação, descobrir talvez à maneira de Borges o jardim dos caminhos que se bifurcam. Não sabemos se foi esse o propósito de Júlio Conrado com este O Som e a Dúvida, ensaio sobre a vida e a obra poética de José Jorge Letria, que acaba de ser publicado. Mas o próprio título parece indiciar que o autor sentiu algumas dificuldades nesta incursão crítica e biográfica em redor de um Poeta que ainda não chegou aos cinquenta anos, possui uma obra distribuída por vários domínios (poesia, conto, teatro, entrevistas, histórias para crianças), mas sem haver ainda à vista um marco que seja por si enaltecedor no plano literário. E Júlio Conrado não deixa de acentuar, na sua introdução, que coube a José Jorge Letria "ser um artista dotado para quem a assunção corajosa das suas contradições tornou possível dar mais um passo em direcção à felicidade, utopia que lhe emprestou a força para se renovar como poeta, como dramaturgo, como autor de histórias para crianças".
Ora, no desvendar dos altos e baixos da sua caminhada, na aventura que viveu como cantor de intervenção pós-Abril ainda na casa dos vinte anos e alcançar pelos meandros da política a posição de vereador da Cultura no Município de Cascais, onde tem desenvolvido iniciativas de grande mérito na valorização daquela região, Júlio Conrado não podia evitar cair num certo enaltecimento de aspectos que com o decorrer tempo talvez acabem por se desvanecer, sobretudo por ter trabalhado a partir de "materiais" literários tão recentes, sem o peso do tempo, crítico e literário, entenda-se, num autor que está ainda no caminho da plena consolidação da sua obra, sobretudo no domínio da Poesia, porque é o seu grande desejo ser no futuro "lembrado como poeta, um poeta que nasceu em Cascais".
Não se pode dizer que a intenção primordial de Júlio Conrado tenha sido tão-só a de biografar quem já tem biografia, isso é evidente, mas também nos fica a amarga sensação de que essa mesma biografia tem muito ainda à sua frente para se enriquecer e valorizar em diferentes planos da realização como escritor que é a vocação natural do autor de Cesário: Instantes da Fala. E por aqui podemos regressar ao sentido mais afirmativo da sua poética, uma vez que nos diferentes registos e destinos que por aí desfilam, à sombra de tantos outros poetas que lhe têm feito companhia, o sentido deambulatório da poesia de José Jorge Letria, como cantor de outros destinos ou oficiantes da mesma luz, espelha-se não só à sombra de Cesário, Pessoa, Pascoaes, Mário de Sá-Carneiro ou Ruy Belo, mas ressoa por outras raízes, numa demarcada intertextualidade expressiva que, no rasto de outras vozes, tem consolidado a sua pessoal e já definidora poesia de contornos bem nítidos, mesmo que uma e outra vez se levante o som e a dúvida que sempre se coloca a quem deseja acima de tudo construir uma obra literária, estudada agora nas suas vertentes biográficas para um melhor entendimento do que tem sido essa aventura do poeta de Carta de Afectos. E, sobretudo, porque Júlio Conrado, com lúcida intenção crítica, soube erguer esse cosmos pessoal e vivencial por onde se alarga até hoje a biografia de um poeta que alguns consideram fragmentado ou dividido entre um e outro género literário dos muitos que tem cultivado. Mas talvez seja esse um dos seus maiores "pecados" ou "qualidades": não se fixar numa só e evidente forma literária, prosseguida até ao cansaço, como o fizeram alguns dos melhores poetas e prosadores deste século português, e talvez por aí se entenda essa "tentação da infelicidade" de que Conrado nos fala, "por fazer do tempo passado - e em especial do tempo de oiro da infância - um tempo que é melhor que o de hoje".
Por último, devemos acentuar ser realmente louvável este propósito de Júlio Conrado se debruçar de forma crítica e biográfica sobre o percurso literário e poético de José Jorge Letria, porque é verdade que o biógrafo e o biografado, consolidando uma amizade de muitos anos, aqui se reencontram com um espírito de geração ou como forma de reafirmar que, na literatura como em tudo o que é da vida, a amizade tem o seu peso e sempre justifica que os afectos se não calem nem escondam. Mas, ao reconhecer que ficou aquém do que desejava fazer com este seu livro, Júlio Conrado sabe de consciência certa e segura que"o poeta não adormecerá à sombra dos louros colhidos e porfiará no seu trabalho até à descoberta do oiro e à realização da sua obra". Por isso, O Som e a Dúvida não deixa de ser um ensaio que se lê com agrado e nos permite descobrir alguns aspectos menos sabidos e conhecidos de José Jorge Letria e, sobretudo, por se afirmar como um bom contributo crítico para a abordagem literária que sempre se poderá fazer de um autor em qualquer fase da sua vida.

Serafim Ferreira
Crítico literário

Júlio Conrado
O SOM E A DÚVIDA
Ed. Hugin / Lisboa, 1999.


  
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Edição:

N.º 89
Ano 9, Março 2000

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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