"Devuelvan nos al niño!" (canção sem palavras) À Estevão Stoer, amigo durante anos, cujos comentários me desafiaram a escrever este texto. Como outros escritos da minha vida.
1.A ilusão da infância Ilusão de quem? Do adulto ou da criança? O adulto tem pensado como deve ser uma criança. Tem desenhado as suas habilidades e aptidões, a sua inocência e a sua responsabilidade. A compilação de decretos eclesiásticos do Bispo católico Graciano, feita durante o século IX e convertido em Código no passado século XX, define à infância. Com essa inocência e irresponsabilidade civil e criminal, já conhecidas pelos meus leitores, à força de tanto martelar sobre o facto neste jornal. Napoleão Bonaparte, mandou também compilar esses textos, para o Código Civil que nos governa. O adulto tem, além do mais, um outro desenho. O desenho do amor às suas crianças e a meninada amiga da sua pequenada. Conforme. Conforme sejam crianças que no seu curto entendimento, amem, respeitem e entendam adultos e as suas idiossincrasias sobre o mundo. Conforme seja um puto ou pequena que não perturbe a sua ideia do dever ser duma família: pequenos nascidos dentro dela e a crescerem ao pé do adulto, como o adulto pensa. Adulto consanguíneo ou adulto pago para ensinar. Penso, e tenho observado, não existir adulto que não "saiba" "de certeza", o que é ser criança, especialmente as suas. Saber variável em contextos de emotividade ou da economia dos ancestrais: do ou dos pais que sentem e falam, do ou das mães que também julgam à pequenada. Palavra não acidental: julgar. Um tribunal em correlação de forças. Adulto que pode ou não saber do saber das análises e estudos feitos por Alice Miller, tanta vez citada por mm neste jornal. Psicanalista discípula dessa outra que estudava a infância, Melanie Klein, e expulsa ambas do colégio de analistas por defenderem que todo adulto tem uma parte de infância viva na sua psicologia e emoções. Ideia que esse adulto que lida ou tem raiva com os seus descendentes, nem sabe que existem, nem, se souber, quereria aceitar. Infância que olha para o adulto com admiração e carinho. Que procura dedilhar a viola das interacções dos seus progenitores, viola que às tantas, toca fora de tom. Infância que imita, sem dar por isso, o que o adulto faz. Ou, já mais crescida, esbate nesse grandalhão para tentar ser diferente, ser um ser de carinho, ser. Ser em procura de entendimento das palavras, ser em procura do entendimento de agires. Queira o caro leitor, ler os textos por mim escritos neste jornal e pouparmos assim mais palavras. O ideal da infância é de duas metades e de duas formas: pôr de perto ou pôr longe, uma conjugação do verbo amar à infância; ou pensá-la duma incapacidade imensa, essa que leva ao adulto substituir, com boa intenção, o agir da pequenada. Erro clássico reiterado no tempo. Seja o que for, tal e qual, há uma opinião sobre a infância, ou parental, ou erudita. E uma terceira, essa de adultos interessados no uso dos pequenos para os seus objectos de vida. Eis, caro leito, o que me interessa retirar do contexto teórico e pragmático do meu primeiro movimento. 2. Alián González Todos sabemos já a história. A do pequeno de nacionalidade cubana, cuja mãe morre no mar e ele é salvo da bóia na qual flutuava no Atlântico, por adultos de boa vontade. Consegue chegar até Miami, USA, e ficar no meio dos seus parentes fugidos de Cuba. Dessa Cuba debatida pela sua dita falta de liberdade para com os seres humanos. Uma Cuba que, nos anos cinquenta do século passado, foi salva do pesado jugo ditatorial. Dessas ditaduras que hoje todos julgamos e condenamos. Dessas ditaduras a deixarem de existir hoje, neste século que observa de perto os direitos humanos. Ainda lembro ser eu próprio uma criança, no dia que Baptista foi abatido pelas forças de Fidel Castro, um ser humano a lutar ao pé do Ché Guevara pelos direitos humanos. E que o mundo comemorara com alegria. Excepção feita por adultos que lucravam com os casinos, propriedades, tabaco, e o açúcar da ilha. Ilha que fora o derradeiro reduto do Império Colonial de Espanha, em 1902. Ilha transformada em Alián González por todos os cubanos anticastristas a habitarem USA. Americanos ou não, a se queixarem da falta de liberdade e comida dessa economia isolada que não consegue sustentar a sua população. Acabou a denominada guerra fria, quando o comunismo universal modificou os seus estatutos e tornara a Rússia a ser um império Czarista. Que bombardeia Tcheschenia. Que não apoia Cuba. Como os povos do mundo a não apoiam, mas fazem de conta que admiram a abertura ao mundo do Presidente não eleito da Ilha. Alián fica iludido entre os seus compatriotas elegantes e ricos, com casa isolada e trabalho com seguro. Alián não sabe que os expatriados cubanos fornecem os elementos para a guerra fria entre o neoliberalismo mundial e o socialismo isolado da Ilha. Embora não sabendo o que Alián pensa e sente. É um pequeno querido pelo seu pai, amado pelas suas avós que acudiram à sua procura para saber quais os desejos do "niño". Desejos de "niño" a não serem entendidos, a serem exprimidos às ditas avós, pelo Tribunal. Como acontece com crianças metidas em sarilhos. Alián é prostituído pelos cubanos em Cuba e pelos cubanos em USA. O seu corpo é usado para avançar mais um passo no derrube duma presidência socialista não eleita. Socialista à antiga. Socialismo que procura, com esforço e trabalho, a igualdade prometida pela Revolução francesa do século XVIII , esse direito declarado pelos franceses e defendido até a morte por Benjamin Franklin, professor de tanto libertador de colónias espanholas da hoje, América Latina: O?Higgins no Chile de Gabriela Mistral e Pablo Neruda, e no Perú de Vargas Llosa e Ciro Alegria, Bolívar na Colómbia de Garcia Márquez, San Martin na Argentina do peronismo e das ditaduras quase tão doentes, como ao do Chile de Isabel Allende. Um Franklin aprendido na França revolucionaria, a redigir os Direitos Humanos na Filadélfia Americana do Século XVIII. Carta básica para a interacção entre os seres humanos do seu país e do mundo. Carta transferida ao Conde de Miranda da Venezuela, preceptor dos Libertadores, já referidos, desses países. Libertadores do jugo de poderes metropolitanos a sugar a mais valia do trabalho indígena, esse que não se paga por não dominarem as técnicas da oralidade económica e da escrita aritmética de Chicago, que hoje tanto nos dói. Dói saber que Alián González não saiba esta História, viva as "estórias" dos seus parentes americanos ricos para ele, viva com prazer a sua história pessoal de menino em férias. A fazer luto pela morte da sua mãe, tragédia por ele testemunhada no meio do mar. Tragédia que deve fazer sofrer um pequeno que sabe fazer luto a pesar dos presentes que a economia dos USA permite oferecer. Alián faz dois meses ou mais que anda a morar nos Estados Unidos, de forma incerta. Pais do tipo substitutivo das emoções e afazeres da criança, mencionados já neste texto, têm-se oferecido a adoptá-lo. Sem se recordar da existência dum pai e duma cumprida família cubana em Cuba à espera do seu regresso. Com todo um povo a gritar pela sua volta ao ninho original. Alián está a ser prostituído por congressistas americanos ao oferecerem-lhe nacionalidade dos USA para o protegerem de Castro. Um Castro a debater em público o valor da sua soberania, porém, da nacionalidade e identidade dum pequeno que, por acidente, caiu no mar. Entretanto, ninguém fala com ele, analisa-o, pergunta-lhe, protege-o dentro da sua identidade. É uma guerra política, na qual Alián é o elo do debate. Passa um avião, Alián berra o seu desejo entre os berros do motor dum avião: ."quero volver a Cuba".."não quero volver a Cuba". O barulho ensurdecedor da máquina que passa e a luta ideológica, não deixam entender o proferido grito espontâneo. Não é analisada a banda sonora: não convém, é mercadoria que vende bem ao olho do comprador de ilusões televisivas. Esse que adora ver a telenovela do meio dia e a da tarde. A minha infância viva na minha pessoa, confronta-se com o adulto a lutar, faz anos, pelos direitos humanos e diz: deixem-me em paz! A minha mente adulta e cartesiana diz-me: que belo troço de História está a provocar Alián, talvez Cuba passe a ser um país de eleições 0s anos 50 do século XX são já história acabada e transformada.A minha pessoa pensa e pensa e compara Alián com os indígenas do Equador, a tomarem o poder por serem maioria. Como Chiapas no México, os Quechua no Perú, a nova Constituição da Venezuela a reconhecer a igualdade dos indivíduos num Estado de Mestiços, os Pehuenche do Chile, a lutarem por conservar as suas terras que os chilenos huinca (brancos), querem expropriar. A prostituição dum menino que o Watch Human Rights devia mandar calar para a saúde mental e física dum ser humano não crescido. 3. O abuso sexual O abuso sexual é parte da prostituição. Há adultos que desejam crianças e pagam por elas. Zâmbia usa este feito para fazer dinheiro e espalhar a Sida em consequência. Diz o pequeno que oiço: não gosto ir para a cama com um adulto dói, dói o corpo e dói o sentimento. Mas, dá dinheiro. Essa Zâmbia, essa Angola, essa Rwanda pelas quais Dianne Spencer lutou. De mão em mão com os princípios compartidos com Teresa de Calcutá. E como muitos e tantos de nós protestamos pelo dinheiro ser a base da vida. Por ser organizador do comércio sexual de crianças entre a Bélgica e a Madeira nos anos 90 do século passado. Base do crime duma criança, cujo assassino foi profusamente filmado na televisão. Produto que faz grandes audiências e vende bem. Esse mostrar do julgamento do prostituto, o aliciar de crianças filhas de pais que necessitam de dinheiro para manter vivo o resto do lar. Abuso, porque a criança não tem opção. Amigo leitor, pense: é natural que a pequenada ame os adultos. É natural que deseje o corpo dum desses adultos. É quase história quotidiana que um adulto inicie uma criança nos prazeres do sexo. A grande parte desses adultos, ensina esses pequenos para as suas aventuras. Há pais que levam os seus rebentos de 12 ou 13 anos a sítios de prostituição de mulheres, para os "fazerem homens". Há as mulheres adultas que aliciam púberes, e até pré púberes a entrarem ao leito. São celebrados pelos mais machistas da população. Mas, oh Leitor!, e a criançada que não tem opção? Essa da Avenida da Liberdade de Lisboa, ou do passeio Estoril-Cascais ao pé do mar à noite? Ou esses outros em outras latitudes do mundo que vendem os seus corpos para o lar gastar e consumir? Que não têm opção por causa de não terem trabalho? Fala-se muito do trabalho da pequenada e como deveria ser interdito: a pequenada é para ir à escola, ao secundário, ao politécnico, às profissões, enfim, para se habilitarem. Especialmente em países como o nosso que, em breve, deve ter uma maioria de idosos. Espere pelo ano 2015 e faça as contas. Veja como a Suécia, Dinamarca, Holanda, e outros, andam a incentivar a feitura de filhos: uniões de facto, direitos de bem estar, abatimento de impostos. Fala-se muito, sem dar pelo facto da prostituição infantil ser um trabalho público que não paga impostos e cobra caro. Como tenho observado no meu trabalho de campo. Como nas histórias de vida recolhidas em dois Continentes, tenho anotado: abuso sexual dentro de casa, abuso sexual por encomenda da casa, abuso sexual por iniciação na autonomia neoliberal. A prostituição da infância. Feito ainda não observado pelos direitos humanos: só condenação pública em palestras políticas, ou em debates de seres humanos éticos modelares que admiramos e respeitamos tanto. Ficamos cheios de canções sem palavras. De versos orais que palavras dizem para incentivar um desejo que existe e se deve orientar. Desejo desviado ao som duma balalaica, como coda final. A escola de Chicago orienta as nossas mentes. É verdade que temos, nós, antropólogos, estudado a fabricação dum ser masculino entre grupos sociais que usam o ritual na relação duma sexualidade oral entre um jovem não casado e uma criança. Iniciação que faz parte do ser, ser, do ser entidade social, do ser pessoa. A pequenada desses lugares, quer na Melanésia, quer na América Latina ou na África, não tem escolha, como escolha não tem o baptizado entre os ocidentais cristãos ou a circuncisão entre os judeus para definir a sua identidade. Coda final que me faz sentir a importância de insistir a falta de direitos universais da criança, direitos que orientem, à Graciano ou à Bonaparte, essa mente adulta para falar abertamente perante a pequenada dos sentimentos eróticos que levam à paixão numa idade, ao amor noutra, ao carinho na eternidade da História. Essa eternidade básica para Alián González ser sujeito de si e da sua família e não dos meios de comunicação que lucram com uma dupla desgraça: o luto que não pode fazer um pequeno distraído no meio de tanto barulho ideológico; e a sua prostituição inocente ao debate internacional sobre o socialismo. Cambridge, Grã Bretanha, 6 de Janeiro de 2000 Raúl Iturra Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE) / Lisboa Bibliografia:
Brhams, Joanes, 1853-1890: Canções sem palavras Iturra, Raúl, 1998: Como era quando não era o que sou. O Crescimento das crianças, Profedições, Porto 1999: O Saber sexual das crianças, (no prelo) Afrontamento, Porto Diários de Campo 1970-1999 Klein, Melanie, (1932) 1959: La phycanalyse des enfants, P.U.F., Paris. Miller, Alice, 1987: The drama of being a child, Virago Press, Londres. Recomendo também: Amâncio, Lígia, 1994: Masculino e feminino. A construção social da diferença, Afrontamento, Porto. Almeida, Miguel Vale de, 1994: Senhores de si. A construção social da masculinidade, Fim de Século, Lisboa. Joaquim, Teresa, 1995: Menina e Moça. A construção da feminilidade, Fim de Século, Lisboa
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