Para o Zé Paulo
Em 14 de Junho de 1930, depois da segunda projecção do seu primeiro filme - "À propos de Nice, point de vue documenté" - Jean Vigo, encorajado por artigos elogiosos aparecidos a seguir à projecção de 28 de Maio, decide pronunciar-se. Escreveu cuidadosamente um texto, muito singular, dando-lhe um título que contém todo um programa "Vers un cinéma social". Às 15h30, no teatro "Vieux Colombier", a projecção de "À propos de Nice" segue-se ao filme de Jean Mitry, "Un coup de dés". É o momento escolhido por esse jovem de 25 anos para lançar-se com fervor e timidez na proclamação do seu texto. Pela primeira vez, fala em público, mas sobretudo, é a primeira vez que o cineasta Jean Vigo "se dirige ao seu público". Porquê dizer em público o que minuciosamente escreveu? Imagina-se que lhe teria sido fácil publicar o seu manifesto em "Le Soir ", por intermédio de Fanny Clair, amiga e colaboradora fiel do seu pai - o anarquista revolucionário Eugène Vigo, conhecido pelo pseudónimo Miguel Almereyda - e que conheceu Jean, muito pequeno. Almereyda foi calado por uma morte violenta. Selvaticamente estrangulado numa noite de Verão de 1917, quando agonizava na cama da prisão de Fresnes, por um comparsa detido que estava a soldo de Melvye e Caillaux, dois ministros de Clemenceau, com os quais tinha ligações. Jean tinha então 13 anos. Pode-se especular, que não terá sido por acaso que Vigo tomou espontaneamente a palavra, doze anos após a morte de seu pai. Como se o seu texto correspondesse a uma tentativa de seguir o caminho de seu pai. Se Vigo chega a Paris, onde nasceu, com o seu filme vindo de Nice é também para mostrar como o filho (e o filme) se parecem com o pai desaparecido. "Vers un cinéma social" afirma a necessidade da urgência de uma mudança na concepção dos filmes franceses revelando a poesia cinematográfica de Jean Vigo, e anuncia os seus próximos filmes de uma maneira muito convicta com esta frase liminar: "Vós pensais, que não vamos juntos descobrir a América", e mais à frente: "Não se trata hoje de revelar o cinema social... mas de nos esforçarmos por acordar em vós a necessidade de ver bons filmes... tratando a sociedade e as suas relações com os indivíduos e as coisas... dirigirmo-nos para um cinema social, seria consentir simplesmente a dizer qualquer coisa e acordar outros ecos para além dos arrotos desses senhores e senhoras que vêm ao cinema apenas para digerir". Com isto pretende circunscrever um campo de acção pouco explorado pelo cinema francês, muito próximo de outro Jean (Renoir), cineasta debutante, ele também filho de um pai célebre, e nas antípodas da vanguarda da época, realizadores como Epstein, Dulac ou René Clair. Tomando como modelo "Um Chien Andalou" de Luis Buñuel e Salvador Dali, Vigo embrulha as pistas e investe noutra posição mais específica e paradoxal: "A nossa vontade foi submetida a uma dura prova, a que nos faz aceitar todas as monstruosidades cometidas pelos homens, enquanto não podemos suportar a visão no écran do olho de uma mulher a ser cortado em dois por uma lâmina. Será isto um espectáculo tão aterrador como o que se nos oferece por uma nuvem a tapar a lua cheia?" Vai ser preciso "ver com outros olhos" a sociedade francesa, não sonhá-la mas mostrá-la, capturá-la crua como num sonho acordado que a trabalha e aguça a percepção. Rendendo homenagem ao "Cine - Olho" de Vertov, Vigo fixa ironicamente os limites e defende o ponto de vista (documentado) do cineasta que não se resume à escolha do local da câmara, nem à montagem, nem à soma dos dois. Ao contrário da personagem de Jean que, em "L?Atalante" mergulha no canal e abre os olhos debaixo de água para melhor ver Juliette, a mulher que ama e que não está lá, a visão do cineasta deve ser organizada, mediatizada, deformada para ter uma oportunidade de decantar a realidade, social ou outra. É aqui que Vigo e Renoir se separam. Lendo este manifesto, é interessante ver como o ardor, a febre com os quais Vigo diz que quer fazer os seus filmes o leva a pistas que seguirá, até tecer o fio que o dirige a "L?Atalante". Anuncia as suas exigências políticas reivindicando o ponto de vista subjectivo do homem que fabrica, abrindo assim a "porta estreita" por onde vão passar realizadores tão personalizados como Demy ou Carax e abre as fronteiras do realismo poético, mais cru e mais incarnado, uma nova via fértil do cinema. Paulo Teixeira de Sousa Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis
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