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Ensino Secundário: Revisão Curricular ou Apenas Reforma dos Programas?

Falar em revisão curricular (neste caso, do ensino secundário) é falar do futuro. E o futuro, como se sabe, é cada vez mais difícil de prever e de preparar, nomeadamente no que ao papel da escola diz respeito.
Isto, contudo, não vale por dizer que serve um qualquer currículo ou que serve uma qualquer revisão curricular nem tão pouco, que não haja necessidade e possibilidade de se fazer um esforço de racionalidade no campo do desenvolvimento curricular.
Como proceder então?
Direi o que me parece ser razoável e necessário para se agir neste domínio. Concomitantemente se perceberá aquilo em que, em meu entender, a proposta do Ministério da Educação sobre a revisão curricular do ensino secundário é defensável e aquilo em que não o é. Adianto, desde já, a opinião de que essa proposta tem muito pouco conteúdo merecedor de uma discussão séria porque não se sustenta em argumentos devidamente explicitados. Assim, referir-me-ei porventura mais ao que não está na proposta (e deveria estar) do que ao que ela contém.
Decerto não estamos na situação de criar um currículo para o ensino secundário a partir do zero. Há uma tradição, há um currículo em vigor que necessariamente criam inércias e constrangimentos de vária ordem em relação à mudança.
Mas impõe-se a quem projecta uma reforma curricular nestas circunstâncias dar dois passos primordiais e, em meu entender, incontornáveis:

- declarar os valores (filósofos, científicos e técnicos, sociais e políticos) que orientam e sustentam a proposta de reforma;
- apresentar um diagnóstico da situação actual, identificando os seus principais aspectos críticos e clarificando a relação supostamente existente entre a proposta que é feita e a superação desses mesmos problemas.

Ora, no que respeita ao primeiro destes aspectos o documento apresentado pelo Ministério da Educação limita-se a um conjunto de lugares comuns vagos e, por isso, sem grande relevância. Citamos apenas um exemplo: "adequar o Ensino Secundário às finalidades enunciadas na Lei de Bases do Sistema Educativo e ao processo de mudança que se verifica a nível nacional e internacional em todos os domínios" o que significa em concreto?
Um processo de construção curricular implica escolhas (por difíceis que sejam), a sua apresentação clara aos principais interessados e a sua fundamentação, se o que se deseja é realmente produzir o debate. Ora, o grau de generalidade que percorre o enunciado de "linhas orientadoras para o ajustamento curricular", no que se refere a valores e princípios, não é de molde a suscitar qualquer debate.
Quanto ao segundo dos aspectos - o diagnóstico da situação actual e a identificação dos seus pontos críticos bem como a relação entre estes e as propostas apresentadas - o documento apresentado não podia ser mais insuficiente. Limita-se a citar a "Revisão Participada do Currículo" (cujos resultados não são publicamente conhecidos), "documentos orientadores das políticas para o ensino secundário, produzidos no âmbito do XIII Governo Constitucional" (quais?), "pareceres e recomendações do Conselho Nacional de Educação". Mas evita totalmente deduzir daí qualquer diagnóstico. Porque não existe? Porque não se quer publicá-lo? Porque não é necessário, nem útil nem urgente estabelecer prioridades? Não se sabe.
Entretanto, os autores do texto sabem (afirmam) que "estas medidas traduzem-se em alterações dos planos de estudo e dos programas, da organização e funcionamento das escolas, das práticas dos professores e da avaliação dos alunos": só que não bastará dizer em que sentido se fazem alterações (o que também nem sempre é dito nesta proposta, convenhamos) mas com que sentido se fazem.
Estamos então no mesmo reino em que estivemos alguns anos atrás: a noção de currículo, de facto não incorpora senão os planos de estudos (apresentados) e os programas (por apresentar), agora com a agravante de que os autores desta proposta sabem (embora actuem como se não soubessem) que "o currículo (?), entendido como o conjunto de aprendizagens que se pretende que os alunos realizem, não se esgota nos planos de estudos e nos programas das disciplinas e áreas disciplinares" (p. 2).
Também pensamos que não. E, por isso, com maioria de razão, perguntamos: onde está o resto, diríamos mesmo, onde está o principal? É que a construção de um currículo não começa nem acaba num plano de estudos e em programas. Apenas, passa por aí.
É, pois, neste quadro, em minha opinião, vago, contraditório e confuso que surgem as propostas concretas, em relação às quais quase só ocorre fazer perguntas:

  • a simplificação da estrutura curricular - porquê esta em lugar de qualquer outra?
  • a Área de Projecto/Projecto Tecnológico - como vai ser viabilizada tendo em conta o fracasso da Área-Escola?
  • a organização do ano escolar em semestres - que vantagens e desvantagens vêem os autores em relação à organização em trimestres?

Uma única proposta concreta merece adesão sem restrições: a da redução da carga horária lectiva dos alunos que de há muito se percebeu ser excessiva, particularmente em cursos predominantemente orientados para a vida activa, impedindo ou dificultando muito o tempo para o estudo e o trabalho autónomo dos estudantes.
A partir desta proposta de Revisão Curricular do Ensino Secundário, dois cenários são possíveis:

A) O Ministério da Educação recolhe a proposta e trabalha mais e melhor para produzir um documento global efectivamente digno de discussão, abordando inúmeros aspectos do desenvolvimento curricular, que neste documento foram ignorados, começando, aliás, por aplicar a si próprio o que neste texto advoga para as escolas secundárias: "rigor e exigência";
B) O Ministério da Educação nem sequer está interessado em saber o que se pensa da sua proposta: daqui a uns tempos informar-nos-á de quais são os novos programas.

A opção por um destes dois caminhos não depende, contudo, exclusivamente, do Ministério da Educação. O modo como a sociedade, em geral, as escolas e os professores, em particular, se posicionarem sobre esta questão poderá fazer a diferença entre uma revisão curricular ou uma mera reforma dos programas.

Manuela Esteves


  
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Edição:

N.º 88
Ano 8, Fevereiro 2000

Autoria:

Manuela Esteves
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação da Univ. de Lisboa
Manuela Esteves
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação da Univ. de Lisboa

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