Não é fácil falar de literatura ou de pintura que sempre foi o fio de prumo de uma sincera e verdadeira amizade que me liga a António Fernando em mais de quarenta anos de companheirismo pelos caminhos da arte. E, em vez de falar desse trajecto comum, nos altos e baixos de muitas conversas e sonhos, começo por dizer, sem nenhuma espécie de originalidade, que a minha "oficina"de escritor nunca foi aparente e sempre se confirmou na soma de muitas leituras ou tentativas para dar a imagem certa do mundo que foi o meu e ao mesmo tempo povoado por outras gentes pelo Porto ou por Lisboa. Mas nesse labirinto de palavras e de muitas mágoas, por sermos o país que somos, sei como este ofício de viver se pôde consumar pela magia da escrita e no reinventar de palavras que tanto podem servir para amar como para criticar. Mas repito que, na minha oficina de escritor, como no atelier de António Fernando povoado por tantas personagens, tem havido lugar para muitos e vários afectos e sobretudo para o prazer da escrita ou da pintura, que ao longo dos anos tem sido a forma pessoal de ambos encontrarmos esta razão essencial vida. Tudo o que até hoje escrevi foi realmente por vocação natural e quase sem ninguém ou muito pouca gente por companhia, que ainda coabita na minha galeria de estima e admiração: não são muitos os nomes que posso invocar, mas talvez os necessários para saber, na contagem que a vida obriga a fazer, como tudo afinal se dispõe preto no branco ou nas contas que assim mesmo se acertam. Por mim, e por nós, proclamo que ser escritor ou pintor em Portugal é aliás ser um artífice que maneja ou se entende com as palavras, emoções, ideias e sentimentos, mas que não tem, não pode nem deve ter, um estatuto diferente ou privilegiado de outra arte ou ofício, seja ela alvenel ou copista, calafate ou entalhador, carpinteiro ou lenhador. E por isso todos os dias me oriento pela estrela boreal de ser um pescador ou marinheiro de águas bem calmas, porque me não posso dar ao luxo de perder o rumo ou exercer outro ofício que não seja o de pela escrita subverter a normalidade mais normal, isto é, a de inverter o sentido corrente de todas as coisas, pessoas e lugares que revivem nas páginas dos livros que publiquei, e quem sabe, talvez como forma comovida de ter a nostalgia do passado que é essa mesma de que falam os poetas quando dizem ter "saudades do futuro". Por isso, sei bem o que representa para mim e para o António Fernando o livro que agora aparece sob a chancela da "Campo das Letras" e com os apoios que o tornaram possível. E, recuando um pouco no tempo, lembro como a propósito de uma exposição do António Fernando na Cooperativa "Árvore", em Outubro de 1987 - uma exposição que passou quase sem eco nos jornais do Porto, e vá-se lá saber porquê -, pudemos ambos falar antes e depois lamentar como tudo se confirmara pelas linhas cruzadas de outros interesses ou lutas de poleiro que nunca foram as suas nem as minhas. E, se isso agora relembro, é ainda pela clara consciência ou tácito entendimento de saber quem tem ou não tem valor, quem é protegido ou esquecido, como é velho na história cultural deste país ou ainda para remorso futuro de quem define, ou assim o julga, as várias cotações na arte ou na literatura. Mas a história no correr dos anos se tem encarregado de dizer quem foram ontem os Girão, os Trigoso ou os Malhoa e quem é hoje Amadeo, Viana ou Alvarez, ou seja, quem esteve vivo no seu próprio tempo para lá dos critérios críticos ou da algazarra dos salões, bienais ou galerias ditas de arte, que muitas vezes o são apenas de outros comércios. E digo isto para reafirmar que a atitude de António Fernando como pintor não tem sido outra senão a do seu trabalho no silêncio do atelier, numa obra realizada pela vida fora, sem dar ouvidos aos críticos nem ter sabido fazer outros negócios. O seu compromisso tem sido sempre com a própria pintura, nessa sabida consciência, como lembrava Marcuse, de que a obra como a cultura é feita de silêncio, solidão, dor e esperança, e por isso excede os limites da vulgar realidade ou das conveniências e tratos que nunca foram do seu feitio. Portanto, creio que não será excessivo repetir que a arte de António Fernando se deve entender nos limites de encarar a vida e o mundo pelo sentimento de um permanente diálogo, sem outras conjecturas nem falsos juízos de valor. Mas, no acto e no gesto de nos consentir uma certa leitura, hoje e depois, se reafirma como a convicção própria de quem, na soma de muitos trabalhos, consolidou uma obra que se decifra nos múltiplos planos da sua evidente expressividade pictórica. Por último, devo salientar este álbum é, sem dúvida, um livro de vários afectos e por ele perpassa muita gente que andou a nosso lado, não só em comunhão de sonhos, mas na certeza de que esta amizade que tem mais de quarenta anos se tem justificado no entendimento de a arte, tanto a da pintura como a da literatura, ser um ponto de chegada depois de o ter sido de muitas partidas. As nossas e as alheias, deve entender-se. Mas poder ainda clamar, quase no fim da viagem, pelos versos de Herberto Helder em forma de "última ciência" e no mesmo sentido cúmplice de estarmos vivos: Pratiquei a minha arte de roseira: a fria inclinação das rosas contra os dedos iluminava em baixo as palavras. Escrevi a imagem que era a cicatriz de outra imagem. A mão experimental transtornava-se ao serviço escrito das vozes. - Uma frase, uma ferida, uma vida selada.
Serafim Ferreira ANTÓNIO FERNANDO ou o Ritual da Pintura Textos de Serafim Ferreira / Óscar Lopes Araújo Moreira / Fátima Pombo / Albano Martins Edição CAMPO DAS LETRAS / Porto, 1999.
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