No conjunto da obra literária até hoje publicada, Leonilde Leal tem-se preocupado em consolidar um sentido narrativo que, por entre uma certa ingenuidade ou pureza, como Urbano Tavares Rodrigues observou ao saudá-la na altura da sua estreia ("um poder mimético que impressiona pela sua candura narrativa, que entretece entre o real e o fantástico, o sorriso e a lágrima, o original e o batido"), alcança tantas vezes raros momentos de expressão humana vivida e sentida bem por dentro e num registo literário muito pessoal. Mas, no propósito de se servir de uma escrita marcadamente feminina, na transfiguração e transposição de um mundo construído pela amargura dos dias e dos anos, no conhecimento da dor e existência de uma alma entregue a si mesma, vivendo ou desvendando os males e sofrimentos das gentes que a rodeiam, Leonilde Leal ergue através das suas histórias uma obra muito à imagem e semelhança da própria vida e no plano textual de definir os contornos físicos e psicológicos das personagens que convoca ou pela verosimilhança narrativa tão presente nos contos ou no seu último romance Portão de Ferro com Zínias. Sabemos que a arte é uma aventura na roda da fortuna que é a vida, porque alguns são fadados para o triunfo total e outros vivem, pelos tempos fora, sempre esquecidos ou apenas lembrados de quando em vez. Não importa saber das razões pessoais que levaram Leonilde Leal a não publicar ao longo de tantos anos, mas interessa sublinhar que nos livros editados nos últimos seis ou sete anos se tem afirmado como uma escritora que, através de uma cativante prosa ficcional, sabe o que calma e progressivamente melhor deseja consolidar ("Quero crescer na escrita e no pensamento como cresci na infância") e o que significa para si a literatura como forma de expressão e de comunicação com os outros ("O maior e o mais elevado poder. Aquele que cada um pode gerir completamente sem prejudicar ninguém. Torna-nos homens, santos, demónios, enjeitados e donos do mundo"). Mas, na linhagem de Irene Lisboa ou de Florbela Espanca, retoma um modo muito singular de contar ou falar da vida quotidiana, porque de forma bem discreta a autora de Dissâmara revela-se atenta, cáustica e amena, como se a arte desse quotidiano vivido e redescoberto se desvendasse num tom ocasional ou vagamente pensado, mas dentro de um lirismo poético que sempre cativa e nos prende. Debruçada sobre o mundo em que vive e dele capta os aspectos mais amargos ou irónicos, tristes ou magoados, como se desejasse abrir o seu "livro de mágoas" para retratar uma vida (a sua e a dos outros) que, em muitas circunstâncias, apenas o não é de coisa nenhuma por muito bem a descrever e transfigurar, mesmo na aparente fragmentação desse universo literário, Leonilde Leal evidencia a profunda humanidade de quem sabe estar na vida, tem olhos para ver, ouvir e não calar, nunca calar, como se observa nas várias histórias que são as contas do seu rosário, ou nos fios entrelaçados e desfiados que, na memória de Ariane, fazem conhecer outros e vários caminhos na vida. Não para se fechar no seu labirinto e fugir à cólera de Minos e antes no propósito de descobrir um outro sentido em companhia de Dionisos e assim atingir a plenitude do triunfo e do amor. Porém, pela sua objectiva proximidade literária de Florbela em que se deve situar e entender a obra da autora de Diário Meio Inventado, dizemos ainda que nem sempre a literatura pode estar de acordo com a vida, mas é pelo tom e no ritmo da própria escrita, no pulsar da vida sentida nos mais simples pormenores que se detecta o rigor e a sobriedade de uma admirável arte de contar (com destaque para alguns dos seus melhores contos, como "Dissâmara", "Que é Feito de Inês?", "O Homem do Pífaro" ou "As Noites do Gato Persa"), num evidente espanto de o mundo se fazer, no bem e no mal, pelos sonhos em que vamos, espelhando nos outros a voz única que por dentro soa do mundo em que se vive, se sofre e se redescobre. Mas, no acto de suportar todas as dores do mundo e da vida, as personagens que a cada instante Leonilde Leal nos faz conhecer humanamente se reflectem no quadro das suas referências e vivências pessoais, ou no comovido desencanto que as domina, chamem-se Fernanda, Alice, Vitoriana, Marta, Luísa ou Inês, e ainda em memória da tia Argôntea poder desabafar que "os homens os homens tia argôntea bem me dizia que eles não prestam que não prestam e não valem nada nem um chavo um chavo? nem a ponta dum chavelho". Numa época de crise como a que se vive, em que os valores morais e estéticos se negoceiam ou nomeiam através de desapiedadas intrigas nos bastidores literários, Leonilde Leal tem a coragem de tudo enfrentar e com serena humildade e alguma sentida verdade sobre a condição do escritor não deixa de se mostrar lúcida, terna, poética ou irónica e fazer dessa absoluta solidão pessoal uma crónica viva dos actos e gestos mais simples (talvez sem outra história) que a vida a devora a cada momento e sem se incomodar, nesse ofício sabido de uma escrita vibrátil e desenvolta, com o silêncio que obstinadamente se tem feito em redor dos livros já publicados. Por último, na releitura destes contos antologiados em Escritos de Março, na sua maioria trazidos e escritos por cima de outras águas e em que sobretudo se privilegia uma vertente de clara expressão feminina, ainda um pouco na lembrança de como José Gomes Ferreira pôde um dia saudar Irene Lisboa, com um vivo sentido de admiração e companheirismo, dizemos que, "depois de pesar bem as palavras na cabeça e no coração", Leonilde Leal merece ocupar sem favor uma posição de relevo no plano da nossa moderna prosa de ficção. Serafim Ferreira Leonilde Leal ESCRITOS DE MARÇO Editorial Escritor / Lisboa, 1998.
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