O autor de Docas Secas nasceu Gândara dos Olivais (1929), fez os estudos primários e secundários em Leiria, frequentou a Universidade de Coimbra, e na cidade do Mondego de águas sempre calmas na longínqua memória camoniana pôde estabelecer os primeiros contactos literários e em especial políticos, em conspirações de pessoal e sincero empenhamento. Licenciou-se em Lisboa como engenheiro geógrafo e fez uma pós-graduação em Cálculo Científico como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, tendo sido professor do ensino secundário particular e superior, trabalhou como especialista de gestão de stocks e técnico de informática na Lisnave e foi director do Departamento de Acção Cultural do Município de Almada, responsável pela instituição do "Prémio Literário Cidade de Almada", muito prestigiado a nível nacional. Mas, quando em 1991 Fernando Miguel Bernardes publicou o romance Docas Secas, a reacção à sua leitura foi de alguma surpresa, não apenas pela qualidade literária em quem se estreava nos caminhos da ficção, mas também pela estrutura narrativa do livro, dividido em três tempos (um "tempo de descoberta", em que as personagens surgem de vários quadrantes, entram em cena, dizem de onde chegam e as condições de vida em que cresceram; um "tempo de lutas e de trabalho", onde é descrito o ambiente laboral e humano dos estaleiros, as condições de luta, revolta e greve por melhores salários; um "tempo de sonho e utopia", em que é evidente a alegria sentida depois de Abril de 74, com lutas e reivindicações firmadas por renovada solidariedade, mas talvez com os mesmos desencantos e desânimos antes vividos nas lutas de 1969), como ainda pelo propósito literário de descrever e fixar o ambiente social e humano conhecido nos estaleiros da Lisnave, na zona ribeirinha do Tejo tão marcado por outras histórias, heroísmos e desgraças, onde cada personagem (Adérito, Seiça, Bento ou Fagundes) desempenha o seu papel, sempre com a intenção de ganhar a vida com o suor das próprias mãos. Mas o que nesse romance sobretudo se evidencia é, pelos caminhos cruzados da sua narrativa e na linearidade do próprio discurso literário, o acto de fazer a clara denúncia ou erguer ainda o mesmo "canto" e em páginas comovidas revelar a "odisseia" vivida antes e depois de Abril nos estaleiros da Lisnave, com todo o seu cortejo de heroísmos, lutas e mortes pressentidas nos anos que passaram, mas também com uma carga narrativa e poética que então nos fez saudar Docas Secas com entusiasmo e sem reservas. Assim, tal como nas histórias de A Enfermeira Olga (1992), onde procura, com nítida intenção, captar a verdade das situações através de um fio condutor que liga todos os contos e determina as várias realidades que perpassam pelo fio da memória sentida e experimentada (histórias de outras prisões e clandestinidades, actos de heroísmo ou formas de solidariedade, companheirismo e coragem, etc.), enfim, todo um universo que é descrito de modo comovente para em forma de balanço de um passado redescoberto Fernando Miguel Bernardes uma e outra vez se mostrar assim solidário com gentes e lugares que foram do seu imaginário, revive pelos fios cruzados da memória um tempo penumbroso que entra pelas páginas dentro e coloca o leitor em confronto com um passado e um tempo recuperado do que foram os anos do fascismo salazarista. Mas sempre com esse pessoal propósito denunciador dos conflitos e das razões imediatas, como acontece em grande parte dos contos deste livro A Imagem de Fausto, com destaque para o conto que dá o título ao conjunto, uma vez mais se reafirma a atitude relevante da prosa de ficção de Fernando Miguel Bernardes, porque nunca se alheia do que narra e deseja acima de tudo oferecer, aos olhos dos leitores, um contributo próprio para engrossar a corrente desses autores que procuram interpretar ou desvendar as realidades da vida e do mundo, dado que a "matéria" literária de que se serve é, afinal, a forma de reconhecer a prosa ficcional como a dimensão estética que melhor se coaduna com a verdade do que sabe descrever e evocar da sua experiência e consentir assim a clara decifração desse mundo conhecido. Ou ainda no sonho mantido de que a literatura seja, no plano da ficção, "essa pequena chama acesa nas encruzilhadas, minas e armadilhas postas malevolamente no caminho daqueles que buscam a sua utopia". Serafim Ferreira Crítico literário Fernando Miguel Bernardes A IMAGEM DE FAUSTO Ed. Escritor / Lisboa, 1999.
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