Nascido em Coimbra (1943), no tempo em que a cidade do Mondego andava em grande alvoroço por causa da guerra e no meio da agitação das ideias, com o neo-realismo no auge e a polícia política sempre vigilante, no rescaldo do movimento literário da Presença e na descoberta inicial do mundo heteronímico de Pessoa, Nuno de Figueiredo soube mais tarde como despontaram no bulício dos cafés os poetas e prosadores que foram a razão visível da construção da sua "casa literária" em largas horas de leitura ou reconhecimento dos lugares míticos da própria criação (Camões, Antero, Pessoa, Pascoaes, Afonso Duarte, Miguel Torga, Carlos de Oliveira, Vergílio Ferreira, António Gedeão, Manuel Alegre e tantos outros). Tendo nascido numa casa sem livros e sem literatos, descobrira o mundo pelos poucos que encontrou na casa de seu tio-avô, o padre Hipólito Gonçalves, que vivia na Casa do Outeiro, em Cernache do Bonjardim, onde na infância e adolescência sempre passou as férias de verão: «Descia de bicicleta com um amigo até ao Zêzere, a cerca de dez quilómetros, para cima é que eram elas, depois de um dia inteiro atravessando a nado de margem a margem, e de mil mergulhos. Esta terra, estes percursos, este rio, estão descritos em contos, romances e poemas». Ora, no itinerário percorrido por Nuno de Figueiredo, e na memória cativa que de tudo pôde guardar, como sobressai na trilogia narrativa Vida e Morte de Inocêncio, composta pelos romances Dias Gloriosos do Império, A Revoada Palavrosa e Poder em Bárbaras Mãos, é esse deliberado propósito de recuperar o tempo vivido e não perdido, fruto da sua experiência directa e pessoal, mesmo no domínio das vivências e descobertas da própria escrita, ou ainda no desvendar de mundos e lugares de muitos livros e autores que pela vida fora lhe têm feito companhia. E, mesmo que abuse de uma certa prolixidade para captar as sombras que ficaram espalhadas no caminho, não deixa de dar conta, numa prosa ágil e bem conseguida, como se urdiu em teia de mil sombras e rastos, rios e lugares de amor e desespero esse cosmos tão fechado ou limitado como se revela o mundo de Inocêncio Farelo - uma personagem ou um herói que desponta depois do 25 de Abril e é fruto de um tempo de ignomínia e de guerra colonial, porque de Mafra a Serpa Pinto, de Coimbra a Lisboa, o que perpassa nas páginas dessa trilogia romanesca é esse modelar propósito de construir, em termos psicológicos bem aproximados, uma personagem que afinal corresponde à ideia do português médio, sabido, desenrascado, esperto, que nunca olha a meios, enfim, uma espécie de novo Malhadinhas manhoso e astuto que tudo faz para subir ou triunfar na vida. Mas nos contos deste último livro, um pouco como já acontecera em Noite é Feminino, o sentido irónico das histórias define-se objectivamente pela intenção de se servir de uma certa truculência narrativa (a partir logo dos nomes das próprias personagens) e dar o retrato de situações e factos que, presos a um quotidiano amargo ou desencantado, oferecem uma imagem real dos lugares e pessoas que aparecem em todos os contos. Digamos assim que Nuno de Figueiredo, na pressa de arrumar as suas gavetas ou consolidar uma obra que nos últimos tempos se tem enriquecido no plano da prosa de ficção e da poesia, quase não tem tempo para depurar a linguagem e se limita a dar os contornos psicológicos ou descrever actos e situações que se adivinham de imediato ou no fim da leitura se sabe o que é já sabido e pressentido nos enredos fáceis com que urde os seus contos. Mas o que mais importa é deixar uma certa dose de contenção à imaginação do leitor e não ser de todo legível a intenção ou o sentido da história que se narra. E se os nomes arrevesados ou curiosos que Nuno de Figueiredo dá às pessoas que entram nas próprias histórias acentuam essa preocupação de as utilizar como forma de ironia, um pouco na linha prolixamente expressiva de um Fialho, o que se deve salientar é ainda o sentido literário que procura impor no desenvolver das histórias, como por exemplo na que dá o título a este livro. Mas, sabendo-se como a carreira literária do autor de Arquipélago está longe de se consolidar, importa referir que alguns dos seus livros têm sido galardoados com vários prémios (Joaquim Namorado, Sebastião da Gama ou Vítor Matos e Sá), e relembrar que, pelo propósito denunciador de uma singular ficção literária, Nuno de Figueiredo não deverá esperar muito tempo pela sua afirmação de escritor. Serafim Ferreira crítico literário
Nuno de Figueiredo OS PERIGOS DO REALISMO Ed. Escritor / Lisboa, 1999.
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