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Papiniano Carlos e A Menina das Gotas de Água

Ainda está por reunir no seu todo a poesia de Papiniano Carlos dispersa em livros publicados entre 1942 e 1957, passando por um excelente volume de crónicas A Rosa Nocturna (1961) ou este encantador poema para crianças que é A Menina Gotinha de Água (1963), até hoje várias vezes reeditado. Mas o que sobressai na obra poética do autor de Caminhemos Serenos é uma clara filiação dentro do movimento neo-realista, embora sem ter obedecido à influência literária ou presença tutelar de Afonso Duarte ou de Miguel Torga, que tanto marcou os primeiros livros dos anos 40 em poetas como Carlos de Oliveira, João José Cochofel ou Álvaro Feijó, entre alguns outros.
Tendo nascido em Lourenço Marques (Moçambique), foi no Porto que Papiniano Carlos fez os seus estudos secundários e frequentou a Faculdade de Engenharia, em curso que não concluiu, mas é verdade que, desde cedo muito empenhado na divulgação da poesia africana de expressão portuguesa, a sua poética pouco se revela devedora dos valores literários de certos poetas angolanos ou moçambicanos, porque o que pesa em toda a obra de Papiniano Carlos é sobretudo o modo interventivo e participativo de se servir da palavra poética como arma ou forma de compromisso sincero e coerente. Ou como observou Jorge de Sena, a sua poesia "ergueu-se acima da oratória, com vibrante generosidade e algum desdém pelas artes poéticas, e teve larga influência em poetas ulteriores". Por isso, repetimos ser urgente que a poesia de Papiniano Carlos, agora no dobrar dos oitenta anos, volte ao contacto com os seus muitos leitores, em volume que traga ao nosso convívio e leitura todos os livros esgotados há muitos anos.
Porém, quando em 1963 apareceu a 1ª. edição de A Menina Gotinha de Água, com excelentes ilustrações de João Câmara Leme, publicado pela Portugália Editora, no mesmo ano em que José Gomes Ferreira também na mesma editorial publicou As Aventuras de João Sem Medo, logo Papiniano Carlos se inscreveu nessa linha de contadores de histórias que, segundo "uma dinâmica dos fenómenos naturais como metáfora da própria renovação social", como salientou José António Gomes, desejam sempre reabilitar o sentido pedagógico do que narram como no caso deste admirável poema estruturado num ritmo melodioso que se entrelaça com as imagens mais acessíveis para um entendimento infantil: todo o poema descreve o ciclo da água não com o propósito de reinventar o que é próprio da natureza e da vida, mas sobretudo pela deliberada intenção de falar das nuvens, dos ventos, as marés, dos rios e dos mares com o encantamento poético de um belíssimo texto que enternece e encanta em cada leitura.
Agora reeditado com interessantes desenhos de Joana Quental, retomo a leitura de A Menina Gotinha de Água, que me não cansei de ler e reler aos meus filhos e o faço com os meus netos neste redobrado prazer e sortilégio das palavras de toda a história se emaranharem no sonho em que vamos e na descoberta das pequeninas coisas, ou mesmo na puerilidade sabida de que a brincar o mundo se redescobrir sob outras formas:

Era uma vez
uma menina
chamada
Gotinha de Água.
A menina
Gotinha de Água
vivia
no mar sem fim.
E era linda,
tão linda,
vestida de esmeralda
e luar.

Serafim Ferreira
crítico literário

Papiniano Carlos
A MENINA GOTINHA DE ÁGUA
Ilustrações de Joana Quental
Ed. Campo das Letras / Porto, 1999.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 84
Ano 8, Outubro 1999

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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