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"Akira Kurosawa, um samurai do cinema"

"Numa vida,
nada é mais sublime
que os últimos instantes.
Vê bem"
in "Barbaruiva" de Kurosawa"

"Creio que é o seu gosto pelo movimento, da acção física que dá a Kurosawa tantos admiradores no Ocidente. Movies must move, "as imagens devem mexer". Esta reflexão de Satyajit Ray, que não se reconhece nesta fonte de inspiração do estilo mas amando profundamente o seu cinema, indica quanto este último era complexo e variado, não redutível a um só aspecto.
Kurosawa foi o primeiro cineasta japonês a ser reconhecido oficialmente no Ocidente, tanto na Europa como em Hollywood graças a "Rashomon". Leão de Ouro do Festival Internacional de Veneza de 1951 e Óscar para o melhor filme estrangeiro em 1952. Kurosawa aproveitou-se deste "avanço" e deste estatuto antes que o nosso conhecimento, muito tardio, do cinema japonês, tanto do lado dos autores tradicionais (Mizoguchi, Ozu, ...) como dos géneros.
A descoberta do cinema de Kurosawa nos anos 50 é feita sobre o fundo da ambiguidade literária do estatuto de autor, falsa legitimidade vinda do interesse manifestado pelo cineasta pela literatura ocidental através das suas adaptações de Shakespeare, Dostoievski e Gorki.
De Shakespeare, Kurosawa fez duas adaptações: "Macbeth" ("O Castelo da Aranha" 1957) e de "Rei Lear" ("Ran" 1985). Do primeiro, Satyajit Ray disse num tom radical comparando-o com a adaptação de Orson Wells: "para mim o filme de Wells é um "bluff". Tudo é muito artificial e pueril". Ray pensa que a adaptação de Kurosawa é superior, ao nível expressivo e na distinção entre o efeito teatral do procedimento cinematográfico "a chuva, o nevoeiro e o vento gélido conferem à imagem uma verdade convincente e poética que nenhum estúdio nos dará". A razão do grande êxito na adaptação de Shakespeare vem do grande amor de Kurosawa pelo teatro "Nô". Em particular pelas peças ditas guerreiras, os discursos dos soldados mortos em combate.
Para filmar a guerra Kurosawa inspirou-se - confessadamente - em Eisenstein ("Alexandre Nevski") e em John Ford. O quadro plástico, a orquestração de linhas e de massas em que a arquitectura da montagem alimenta o espaço e o tempo, tem a sua fonte em Eisenstein enquanto que o movimento que leva ao desastre lembra o Ford do combate de "Forte Apache". Esta sequência inolvidável, onde uma cortina de poeira torna incompreensível os movimentos da tropa, torna-se para Kurosawa uma obsessão e de ponto limite da representação, momento onde o espectáculo de guerra - quadro seria mais certo - se torna num écran que mascara a sua realidade dizendo a sua verdade.
O Homem para Kurosawa não nascia com direitos sobre o mundo. Para ele nada estava adquirido. Pelo contrário, o Homem devia olhar de frente o pior do que a Humanidade foi e será sempre capaz. Em "Rapsódia de Agosto", o pior tem os olhos de uma bomba atómica. Ela é artificialmente mostrada, não do alto - as imagens de arquivo, os olhos dos que a lançaram - mas do ponto de vista dos que, em baixo, viram a explosão de frente e gostariam que os outros se lembrassem. Esta necessidade de ver o insustentável do fundo dos olhos, ponto por onde o teatro shakespeariano de Kurosawa passa para o cinema, tem origem num episódio da sua vida de que ele fala na sua autobiografia. Durante o tremor de terra que assolou Tóquio em 1923, Kurosawa tinha treze anos, o seu irmão mais velho encontrou-o entre as ruínas e obrigou-o a sustentar o olhar nas coisas horríveis. "Se tentava virar a cabeça, o meu irmão dizia-me: "Akira, olha bem agora". Foi esta prova que Kurosawa não deixou de pôr nos seus filmes, outra maneira de ser o "positivo" da atitude "negativa" do seu irmão (a visão dos cadaveres após o tremor de terra) e faz com que o seu cinema encontre aí a sua razão de ser. Porque um filme, para ele, ao contrário de Hitchcock, não existe por si só, não nasce assim, por jogo ou prazer (a infância, precisamente). Um filme deve-se também ao mundo, a fim de reparar a dívida e abater o déficit. Menos divertido mas também essencial.

Título "roubado" a Martin Scorsese "Cahiers du Cinéma" - Outubro/98

Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis


  
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Edição:

N.º 84
Ano 8, Outubro 1999

Autoria:

Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto
Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto

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