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Como educar depois de Díli, Liquiçá e Baucau?

Um novo mapa do horror constrói-se, hoje, a partir de Ermera, Baucau, Liquiçá, Bobonaro, Viqueque, Manatuto, Los Palos ou Díli. Nomes estranhos e distantes que se nos foram tornando familiares à medida que íamos aprendendo, também, novos sentidos para palavras tão velhas como crime, ódio, intolerância e cumplicidade.
Timor Lorosae, o drama daquele povo digno, corajoso e mártir, foi-se tornando, depois do sonho e à medida que acordávamos, num pesadelo insuportável. Nenhum de nós se sentia capaz de acreditar que fosse possível odiar tanto, mentir de forma tão descarada e ser capaz de exibir tamanho cinismo e hipocrisia como alguns o fizeram.
Em todas as vigílias e manifestações de solidariedade ouvíamos, inevitavelmente, as mesmas perguntas: Como é possível? Porque é que a comunidade internacional não intervém? O que poderemos fazer? Houve, contudo, uma questão que, entre todas as outras, nos inquietou particularmente. Como é que eu hei-de educar o meu filho num mundo como este? Era a interrogação a que alguém se expunha, e nos expunha, num dos pequenos grupos de manifestantes.
Como educar depois de Díli, Liquiçá e Baucau? Alguém fizera, antes, a mesma pergunta após Auschwitz e é de admitir que a mesma questão possa ter sido colocada, desde o princípio deste século, em inúmeros momentos onde a bestialidade e a indiferença humanas triunfaram. Valerá então a pena continuar a fazer essa pergunta depois de cada massacre, depois de cada genocídio? António Sérgio deixou de escrever sobre educação quando a II Guerra Mundial eclodiu, vinte anos depois de cerca de nove milhões de pessoas terem morrido num conflito de grandeza equivalente.
Face ao drama de Timor somos obrigados novamente a perguntar o que é que a educação tem a ver com as chacinas impiedosas e cíclicas que ocorrem no mundo em que vivemos. Não será uma ingenuidade reivindicar a necessidade de projectos educacionais preocupados com a formação para o respeito por si e pelos outros, pela diversidade, pela partilha e a convivência democráticas ?
Cremos que não. Se é possível termos ainda uma réstea de esperança que nos permita acreditar, após a dor dos dias de sofrimento, que Timor se vai tornar na terra do sol nascente - depois de ter sido a terra do sol poente para Salazar e a vigésima sétima província para Suharto - é porque houve gente capaz de lutar por isso, gente capaz de enfrentar a ignomínia, o silêncio moribundo dos algozes e a hipocrisia descarada e sem princípios dos fariseus. Gente que, com certeza, cresceu e viveu de forma a compreender a importância dos outros e da dignidade como referências fundamentais das suas vidas.
Não acreditar que a educação pode contribuir para nos humanizar e humanizar o espaço que partilhamos seria um acto tão cego quanto injusto. Injusto, por exemplo, para pessoas como Luísa Teotónio Pereira que, no âmbito do CIDAC (Centro de Informação e Documentação Amílcar Cabral), foi denunciando, apesar da hostilidade e da indiferença massiva reinantes, a pretensa sensatez daqueles que em Portugal bem depressa aceitaram, defenderam e silenciaram a anexação de Timor-Leste pela Indonésia. Injusto para Barbedo de Magalhães, o incansável organizador das jornadas de Timor na Universidade do Porto durante os anos da ocupação. Injusto também para Adelino Gomes, esse auto-intitulado "malai mutin", que ainda hoje nas páginas do "Público" continua a chamar os bois pelo nome. Seria igualmente injusto para Rui Araújo, o jornalista que através de uma "Grande Reportagem" memorável, transmitida pela RTP, relançou a causa de Timor junto da adormecida opinião pública portuguesa. Seria injusto, também, para Max Stall que, corajosamente, mostrou ao mundo o massacre do cemitério de Santa Cruz e para Noam Chomsky, o linguista americano que logo em 1975 ergueu a sua voz para denunciar o genocídio e a cumplicidade de Kissinger e Gerald Ford com a invasão indonésia. Seria injusto para todos os outros que não se calaram ao longo destes anos, combatendo a indiferença e não se submetendo às imposições de um conveniente realismo estratégico-político, o qual permitiu que um país como a Indonésia, gerido de uma forma ditatorial há mais de trinta anos, tenha construído o quarto maior exército do mundo, apoiado, treinado e alimentado, entre outros, pelos E.U.A e pelo Reino Unido. E isto apesar de Suharto ter acedido ao poder através de um golpe militar, eliminando, em poucos meses na sequência desse mesmo golpe, cerca de 500 000 militantes e simpatizantes do Partido Comunista Indonésio (PKI), força política que havia apoiado Sukarno, o presidente deposto e o fundador da nação. Seria injusto, finalmente, para aquela jovem indonésia que, correndo riscos pessoais inegáveis, ainda há pouco vimos apelar, na televisão, para uma intervenção urgente da ONU em Timor Lorosae, de forma a parar o genocídio planeado pelos militares indonésios que ela corajosamente acabara de denunciar.
Sendo certo que necessitamos de construir uma nova ordem mundial, assente noutros pressupostos políticos e num outro conjunto de direitos e deveres, é também certo que a sua emergência muito fica a dever àquelas mulheres e àqueles homens que sabem, ou que um dia souberam, ser a voz dos que não têm voz. Aqueles que se indignaram e agiram em conformidade com essa indignação, sujeitando-se ao ostracismo político e social, à incompreensão, à calúnia ou à perseguição que os poderosos lhes moveram. É por isso que acreditamos que a configuração e a concretização de um projecto educacional de inspiração democrática pode fazer a diferença, isto é, pode contribuir para o exercício de uma cidadania activa e substancial, condição fundamental para que este planeta, e todos aqueles que o habitam, nele tenham, e possam sonhar, um futuro.
O rosto e a voz de Ana Gomes têm-nos vindo a ensinar isso todos os dias. As crónicas dos dias de terror de José Vegar, Luciano Alvarez, Hernâni Carvalho e Jorge Araújo ou a emissão contínua e persistente da TSF mostraram-nos como a coragem e a responsabilidade cívicas são requisitos fundamentais para o exercício de uma profissão. Tal como a angústia de José António Cerejo, jornalista do "Público" o comprova também, quando, a exemplo de outros colegas seus, se questionava humildemente sobre as suas responsabilidades como homem da imprensa no drama do povo maubere, apenas porque não foi capaz de prever a mentira, o descaramento e a brutalidade consentida dos assassinos. Poderíamos, igualmente, recordar Xanana Gusmão, Ramos Horta, os dirigentes do CNRT ou os guerrilheiros anónimos das FALINTIL pelo seu exemplo de dignidade e de coragem quase suicidas. Poderíamos recordar, finalmente, Carlos Ximenes Belo e Basílio do Nascimento que assumiram de um modo consequente e decisivo a sua condição de católicos e bispos contra a brutalidade dos opressores e o silêncio cúmplice do Vaticano.
Porque é que alguns se fecharam na linguagem ambígua, fria e sibilina da diplomacia e outros assumiram frontalmente as suas responsabilidades quando era mais que evidente estarmos perante um crime que muitos, por razões diversas, não queriam encarar como tal? Porque é que há quem se interrogue sobre o sentido das suas acções, enquanto outros se encerram num pragmatismo caracterizado pela hipocrisia e pela irresponsabilidade moral? Porque é que uns seguem o caminho mais fácil, enquanto outros tentam encontrar os percursos mais justos? Como é que a educação pode contribuir para explicar as diferentes atitudes que podemos assumir face aos outros e aos acontecimentos?
Depois de Díli, Liquiçá e Baucau será possível que alguns de nós continuem a entender a educação para a cidadania como uma finalidade de um espaço curricular, sujeito a uma perspectiva endoutrinadora ou, na melhor das hipóteses, a uma questão periférica? Depois de Díli, Liquiçá e Baucau será que estaremos dispostos a assumir o nosso papel de educadores em função de um projecto que não se esconde por detrás da Matemática, da Língua Materna, da Biologia ou da História para iludir o processo de formação pessoal e social dos rapazes e das raparigas que frequentam as nossas escolas?
Depois de Díli, Liquiçá e Baucau será possível que não assumamos, definitivamente e de forma consequente, outros sentidos para a educação familiar, a educação escolar e, de um modo geral, para outros tipos de modalidades educativas? Depois de Díli, Liquiçá e Baucau será que estaremos dispostos a assumir o nosso papel de educadores em função de um projecto que a pretexto das convenções sociais ou de um futuro, que afinal ninguém pode prever, inibe os afectos, a inteligência e as iniciativas humanas dos nossos jovens ?
Tememos que passado este momento de emoção nacional deixemos de estar disponíveis para reflectir sobre o nosso contributo para o estado em que se encontra este mundo e para pensar nas possibilidades que vislumbramos para agir de forma coerente. É que pensar na dimensão ética e axiológica da educação, valorizando-a suficientemente como um eixo incontornável e primeiro da nossa actividade educativa, tende a ser muitas vezes entendida como uma atitude diletante. Mais do que a dor que os nossos lenços brancos exprimem, é o consolo de descobrirmos que o nosso vizinho também colocou um lençol na janela que nos pode levar a compreender como nada há de gratuito em definir o aprender a reconhecer o outro que há em nós, através do reconhecimento desse mesmo outro, como uma finalidade primordial da educação na família, na escola e nas comunidades em que vivemos. Não foi isso que pudemos viver nestes dias malditos, quando sentíamos e gritávamos que todos somos timorenses ?

Ariana Cosme/Rui Trindade
Faculdade Psicologia Ciências Educação/Univ. Porto


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 84
Ano 8, Outubro 1999

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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