Na passagem do segundo centenário de seu nascimento, digamos que Almeida Garrett (Porto, 1799-Lisboa, 1854) ainda continua vivo e presente na cidade que o viu nascer, mas na qual pouco tempo vivera, porque é sabido que passou parte da infância e adolescência em Angra (Açores), se licenciou em Leis pela Universidade de Coimbra e ao Porto só regressou para escrever algumas das melhores páginas narrativas, como O Arco de Sant'Ana (1845) exactamente no mesmo ano em que nasceria Eça de Queirós. Dotado de uma excelente capacidade literária, cultivou vários géneros, a contrastar com a sua carreira de educador, político, deputado, par do Reino e ministro, mas foi no plano da literatura que o nome de Garrett se perpetuou, as suas obras ainda se lêem com o mesmo prazer ou as peças de teatro se representam com todo o interesse de outras épocas, e entre elas se destaca Frei Luís de Sousa pela sua clara actualidade dramática, dando assim razão a Vitorino Nemésio que um dia pôde afirmar que "a extraordinária influência de que Garrett gozou na sociedade portuguesa não é, como hoje somos tentados livrescamente a julgar, um puro magistério literário - é uma irradiação de toda a sua pessoa e um resultado calculado pelos propósitos de educador, de interventor público na política e na estética". Escrita em 1843, e representada pela primeira vez em 1847 no Teatro do Salitre, numa versão que foi então censurada, Frei Luís de Sousa é de facto uma das peças mais significativas do teatro português. Num texto que escreveu (Memória) para explicar o seu drama, Garrett afirmou ter criado uma peça para colocar em palco os actos e sentimentos de «gente boa e temente a Deus», mas como na tragédia antiga pudesse «excitar fortemente o terror e a piedade». Toda a acção de Frei Luís de Sousa fala da destruição de uma família virtuosa e de perto ligada com o desastre português nos finais do século XVI, ainda na memória de Alcácer-Quibir. As personagens centrais (Madalena, Maria, Telmo, Manuel de Sousa Coutinho e D. João de Portugal) debatem-se num conflito que ainda é de hoje, ou seja, o sentimento da perda do marido, uma nova paixão amorosa em que Madalena se envolve, o amor e a vergonha de Maria, a fidelidade de Telmo, o velho aio, e sobretudo a figura do Romeiro, ou a de D. João de Portugal, que Madalena julgou tivesse morrido na batalha de Quibir e regressa talvez para acordar os remorsos de sua Mulher ou despertar a consciência de quem não colocou a hipótese de que estivesse vivo. Mas, por entre pressentimentos e inquietações, dividida entre o passado e o presente, torturada pelas culpas de amor que Manuel de Sousa Coutinho lhe despertou, a tensão dramática agudiza-se até ao terceiro e último acto num desfecho que se revela de algum modo absurdo, porque a perplexidade vivida no desenrolar da peça acentua marcadamente o carácter melodramático de um texto teatral que, geração após geração, tem sido objecto de inúmeras edições e um dos mais estudados no conjunto da obra garrettiana, para se lembrar ainda os diferentes níveis de interpretação e de encenação que Frei Luís de Sousa tem justificado. Sabemos da originalidade e talento das peças de Garrett e das razões que levaram a profundos estudos críticos em redor da sua importante obra literária (e não podemos deixar sem registo alguns dos melhores trabalhos de António José Saraiva, Óscar Lopes, Jacinto do Prado Coelho, Ofélia Paiva Monteiro, Andrée Crabé Rocha ou Augusto da Costa Dias), mas no ano em que se comemoram com merecida pompa os duzentos anos de nascimento do Poeta de Folhas Caídas importa ainda lembrar como se entende bem a vaga de edições anunciadas da sua obra literária, de que este Frei Luís de Sousa, com um rigoroso e esclarecedor prefácio de Vasco Graça Moura e excelentes desenhos de Alfredo Martins, é uma interessante iniciativa que não pode nem deve passar desapercebida, não só pelo seu critério editorial, mas sobretudo por neste prefácio do poeta de Uma Carta no Inverno Garrett ser entendido à luz de outros valores pessoais e literários, pelo esmiuçar crítico das razões que o terão levado a escrever há mais de cento e cinquenta anos este drama tão conhecido dos palcos portugueses. Escritor que soube aliar as ideias com a acção política e interventiva na sua época, como alguns dos seus contemporâneos, Almeida Garrett não é só o autor desse livro admirável e ainda actual que é Viagens na Minha Terra, mas deve repetir-se que sempre orientou a sua atitude literária no sentido de que «a coerência política é de princípios e não de pessoas» - e disso é superior exemplo a sua actividade cívica, política e cultural que em tempo de conturbados sobressaltos e descréditos em que se empenhou e de modo irremediável declarou um dia que «os poetas se fizeram cidadãos, tomaram parte na coisa pública como sua»,mas sem deixar de entender que a solidão do escritor ou do poeta era a sua própria couraça, a muralha em que se devia fechar para construir a expressiva obra que nos legou. E por isso se entende bem o silêncio final de Frei Luís de Sousa, talvez como corolário das suas próprias esperanças e desilusões em muitos anos de lutas, porque a entrada no convento de Madalena e de Manuel de Sousa Coutinho, nesse modo de dizer adeus ao mundo, parece simbolizar então a clausura de todo o reino. Serafim Ferreira Crítico literário Almeida Garrett FREI LUÍS DE SOUSA Prefácio de Vasco Graça Moura Desenhos de Alfredo Martins Ed. Campo das Letras / Porto, 1999.
|