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Criar é Fazer Crescer

P. É um areal de desengonçamento...
R. A criança move-se a seu tempo
(adivinha umbunda, Angola)

Ao longo destes artigos, pretendemos focar alguns dos aspectos mais relevantes da criança na tradição oral, lusófona, fixada em registos escritos de índole literária ou não. Serão priorizadas vertentes como a imagética da criança e os parâmetros educacionais, subjacentes à referida tradição. Ocupar-nos-emos da tradição (traditio, acção de entregar, transmitir ou dar alguém ou alguma coisa), preferencialmente inscrita na literatura de tradição oral e na etno(antropo)logia, apesar das várias distorções inerentes ao seu registo: a inventiva do informante ("Quem conta um conto, acrescenta-lhe um ponto"); a da alteridade do colector, patente no registo, por vezes, em diferido e, tantas vezes, objecto tradução; enfim, a do olhar, sempre alienígena e "ideológico", do estudioso da tradição.
Poucas dúvidas haverá em relação à fluidez, e correspondente complexidade, do conceito de "criança". Buscar na sua raiz etimológica a solução para a destrinça do seu significado - creantia (criar, fazer crescer) - poderá provocar um realçamento do carácter movente que o sema "criar" implica. A componente social torna o vocábulo ainda de significação mais movediça, ao longo dos tempos e nas diversas sociedades (Ariès, 1988).
Essa inconsistência é realçada por alguns africanistas (Erny, 1968:144; Thomas, 1991:392; Feliciano, 1998:390), em relação à criança africana que constituiria, à nascença, o contraponto, invertido, do velho no limiar da morte: um, nascediço, emerge do estado larvar; o outro, morrediço, imerge no estado de defunto: ambos no patamar da vida e da morte, afinal, porto de partida e chegada, como se constituíssem duas efígies da mesma moeda, o deus Jano das duas faces (não diz o ditado, africano e português: "De velho se torna a menino" ou "Velhice, segunda meninice"?).
Nas sociedades arcaicas, o período da infância - fase etária correspondente ao "infante", aquele que ainda não fala - é bastante curto, coincidindo, grosso modo, com a fase pré-iniciática que precede os também designados ritos de puberdade (puber, adulto, coberto de pêlos); contudo, nas sociedades actuais, de cariz industrial e urbano, o mesmo período foi alargado, chegando a atingir o nível etário correspondente à média de vida nalgumas sociedades arcaicas. A não uniformização das designações portuguesas, relativas às diferentes "idades" é referida por Leite de Vasconcelos (1967, vol. V:3) que cita: "Em Divertimento Erudito, II, 1738, p. 123, apresenta-se a seguinte classificação: Infância - até ao 4º ano; Puerícia - até ao 10º, segundo os filósofos, mas, para os teólogos, até ao 14º nos machos e 12º nas fêmeas; Puberdade - até aos 18 anos; Adolescência - até aos 22 na opinião de uns e 25 na de outros; Juventude - até aos 36 ou 41; Virilidade - até aos 50 ou 56; Senectude - até aos 65 ou 68; Decrepitude - até aos 98.
O mesmo etnólogo (ibidem:3-4) refere outra classificação portuguesa: "Período de lactação - até 1 ano; 1.ª infância - até aos 7 anos, época da mudança dos dentes ou 2.ª dentição; 2.ª infância - até aos 12-14 anos, época da puberdade; Adolescência ou juventude - dos 14 aos 19-20-25. Desde a puberdade até a época em que o corpo adquire toda a sua perfeição física; Idade varonil ou viril - dos 19- -20-25 aos 60; Velhice - dos 60 em diante; Decrepitude - é um estado. Mocidade é o vigor próprio da juventude, que dura mais ou menos tempo, chegando, nalguns indivíduos, aos 30 anos."
Alguns autores africanistas consideram que a infância africana se estende até ao casamento (N`Da, 1978:3) - habitualmente, o último rito de passagem, ante mortem - que seria o culminar de um processo de desenvolvimento e de maturação biológico-social, desembocando na eclosão de novos seres: os filhos seriam o bilhete de identidade de um verdadeiro adulto, e a única garantia para a aquisição do estado de defunto e/ou de antepassado.
A própria designação da criança não é unânime, na tradição portuguesa, apresentando Leite de Vasconcelos (1967, vol. V:6) a seguinte lista de "palavras designativas de pessoas de pouca idade": "Cachopo, a (Beira); canalha, criançada (Beira e Norte); catraio, a; criança (em geral); crianço; fedelho; ganapo, a - rapaz, rapariga, quase sinónimos de gandulo; ganapagem (Bragança, Macedo, Mirandela); gandulo, a - rapaz, rapariga, até aos 10 anos. Aplicado unicamente até aos 19 anos no sentido de garoto, larápio, etc.... gandulagem (Bragança); garota - em bom sentido; garoto - diz, por modéstia, um pai, falando do filho; homenzinho; mancebo - em mau sentido diz-se manceba; miúdo, a; moço, a; moço pequeno; moça pequena (Algarve); pequeno; petiz, petiza; rapagão; raparigo - menino de colo (Bragança, Miranda); rapaz - em Miranda diz-se também rapaza; rapazelho; rapazete; rapazinho e rapazito; rapazote."
Se confrontarmos os significados, antigos e actuais, de algumas das referidas denominações (canalha, gandulo e gaiato), talvez não seja difícil constatarmos a ambivalência de que se reveste essa, pequena e grande, personagem que apelidámos de criança, aliás, reflectida no adagiário em Português: "No velho e no menino, o benefício é perdido"; a que se opõe (e/ou complementa): "Serviço de criança é pouco mas quem não o aproveita é louco".

Américo Correia de Oliveira
Escola Superior de Educação de Leiria

Bibliografia referenciada

  • ARIÈS, Philippe (1988) . A criança e a vida familiar no Antigo Regime. Lisboa: Relógio de Água Editores/Antropos (ed. orig. Éd. du Seuil).
  • ERNY, Pierre (1968) . L'enfant dans la pensée traditionnelle de l'Afrique Noire. Paris: Le livre Africain.
  • FELICIANO, José Fialho (1998) . Antropologia Económica dos Thonga do Sul de Moçambique, Maputo, Arquivo Histórico de Moçambique, Estudos 12.
  • N'DA, K. Pierre (1978) . Le personnage de l'enfant dans les contes africains. Lille: Thèse, doctorat de 3.º cycle, Université de Lille III.
  • THOMAS, Louis-Vincent (1991) . La mort en question. Traces de mort, mort des traces. Paris: Éditions L`Harmattan.
  • VASCONCELOS, J. Leite de (1967) . Etnografia Portuguesa. Tentame de sistematização. Livro III. Vida tradicional portuguesa (o indivíduo, a família, a sociedade), vol. V. Lisboa: Imprensa Nacional.

Jornal a Página da Educação nº 83 - Setembro de 1999, pg. 23


  
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Edição:

N.º 83
Ano 8, Setembro 1999

Autoria:

Américo Correia de Oliveira
Escola Superior de Educação, Leiria
Américo Correia de Oliveira
Escola Superior de Educação, Leiria

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