Não são muitos os autores portugueses que,pelos caminhos da ficção literária, desvendam os sentidos da memória biográfica ou procuram descer aos meandros da sua própria experiência, entrecruzada por pretextos que não escondem nada daquilo em que se jogam ou denunciam pela verosimilhança narrativa que seguem. É o que tem acontecido com Júlio Conrado desde há anos,no claro propósito de pela prosa ficcional abordar problemas e questões que muito de perto se ligam com o mundo em que se vive. Assim, ao retomar neste último romance (Maldito Entre as Mulheres) a forma e o sentido de pela memória querer recuperar o tempo vivido e experimentado, mesmo no desvairado correr dos anos e dos registos que de tudo ainda pôde guardar, Júlio Conrado assume neste livro essa mesma intenção de pela factualidade histórica retratar a presença de um tempo de vivência e descoberta, por entre medos, esperanças e frustrações, como se pode observar em certas notas referenciais, mas, no alargado fio narrativo do seu discurso ficcional, como já acontecera em Gente do Metro ou As Pessoas de Minha Casa,percorre ainda esse trajecto da própria realidade que bem conheceu, vivida e observada nos confrontos trazidos da vida e do convívio com os outros, porque se expõe de corpo inteiro nos altos e baixos do que a vida ensinou. E assim a sua ficção se desdobra por lugares de experiências sentidas bem de perto e por dentro, nas imagens de certezas e muitos desencantos antes e depois de Abril, sem no entanto falar neste novo romance desse tempo de revolução, como já fizera na narrativa Era a Revolução, mas de um outro tempo biográfico, todo ele bastante português suave, de sonho e desenvoltura, de incomodidade e de um marcante erotismo, não por retratar o "modus vivendi" desses recuados anos cinquenta e sessenta na linha do Estoril. Porque o que se narra de forma solta e um tanto directa, nas referências objectivas a pessoas e lugares, tem muito a ver, sobretudo, com unma vivência angustiante e desencantada nos valores que se propunham ou defendiam,mas depressa entraram nos eixos de uma quase repetida normalidade e as preocupações vivenciais não puderam conhecer o rumo de uma utopia ou a veemência dera lugar a um vago sentido de desilusão e de frustração nas relações amorosas ou no alargar dos afectos para outras zonas de afirmação pessoal. Maldito Entre as Mulheres é um romance de explosão sentimental, mas, nos limites mais toleráveis ou no entendimento que os anos melhor deixaram perceber, trata-se de uma cumplicidade narrativa em que o autor se joga por inteiro, numa linguagem despojada, desenvolta e experimentada. E, no plano desdobrado de uma história contada por interposta pessoa, que conhece bem o narrador pelo encadear da própria história (e o Túlio Vieitas de quem a professora fala por dele se lembrar desde os bancos da escola primária é ainda o"alter ego" do próprio autor), todos os planos narrativos do romance, numa forma de discurso (quase directo), mesmo no modo solto de desenrolar esse "discurso amoroso", em linguagem incisiva e de recorrência à memória como forma discursiva de aliar todos os elementos da realidade, fazem entender que o pretexto essencial de Júlio Conrado foi realizar um romance em que tudo pudesse entrar, em que as pessoas fossem convocadas como sombras dessa mesma realidade ficcional, enfim, em que tudo fosse utilizado como matéria para urdir um romance pleno de subtileza, pouco discreto, é verdade, mas com um sentido literário de largo fôlego narrativo. Se tudo aquilo de que se fala ou das gentes que se convocam, muitas vezes com grande ironia, para entrarem no jogo de relações que o romance estabelece nos vários capítulos em que está estruturado, denotam a evidente consciência de um narrador que se joga a si mesmo no meio dos conflitos e das aventuras amorosas, literárias e outras, dizemos que, pela consciência de um certo vazio ou conspiração de muitos silêncios, ou no sentido perdido de certas palavras que ainda fazem sentido, Maldito Entre as Mulheres recupera essa memória do tempo ou o propósito denunciador de nada se ter pedido e poucos terem sido os ganhos de um período da vida que passou depressa, desapareceu na voragem de fugidias ligações e só consentem no correr dos anos alguns desabafos como este: «Foi um tempo feliz, ou, como mais tarde diria o David, um amor feliz. Um tempo sem nuvens, mesmo nos dias de sol encoberto. Nuvens que, de resto, terão aparecido, sem que eu delas me apercebesse, numa tarde de sol, sem nuvens» (pág. 74). Mas, tal como se regista em As Pessoas de Minha Casa ou Era a Revolução, Júlio Conrado denota neste romance que, pela forma corajosa como fala do seu trajecto literário e humano, sabe povoar esse passado com outra gente que andou no caminho da sua experiência, retratada neste livro com toda a verdade e o rigor ficcional dentro dos limites da memória e assim uma vez mais se afirmar literariamente contra a corrente. Serafim Ferreira Crítico literário Júlio Conrado MALDITO ENTRE AS MULHERES Edições Colibri / Lisboa, 1999.
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