Há muito anos, José Rodrigues Miguéis pôde vaticinar que quando a mais-valia do tempo tivesse em definitivo cristalizado a sua obra de audácia e reticência, de anseio e pudor, «Irene Lisboa seria, toda ela, um documento humano de irrecusável pungência e beleza: e nenhuma obra de ficção poderá perdurar mais nem melhor do que as angústias que ela nos faz sentir e adivinhar». O tempo passou, decorreram muitos anos sobre a sua morte física, e a obra literária de Irene Lisboa (1892-1958), na humildade da sua grandeza,está agora a ser reeditada na série das «Obras Completas», com o entusiasmo e rigor crítico de Paula Morão. É uma obra que está bem viva, na forma de intimidade e verdade que definiu muito bem o trajecto ou a aventura literária da autora de Contarelos, fechada no individualismo do próprio drama humano que soube transportar pela vida fora e fez dela um dos maiores escritores deste século. De facto, Irene Lisboa é uma prosadora que, vivendo em tempos de infortúnio e de miséria fascista que mais e sempre sobressaltaram a sua alma de Mulher sensível e simples, atenta ao mundo em que viveu e por isso soube captar desse tempo penumbroso um retrato amargurado e pungente, doloroso em muitas circunstâncias, ao longo de uma vida que só o não foi de coisa nenhuma por ter sabido preenchê-la, no aparente vazio do seu universo literário, com a profunda humanidade de um saber estar nesse mundo e ter olhos para ver, ouvir e não calar, nunca calar, reinventando o mistério da vida e revalorizando o que tantas vezes não pôde ser valorizado, por ter desde o início da sua aventura criadora, como já disse Óscar Lopes, «a preocupação dominante de não trair a vida por amor à arte, pela convicção de que a única obra de arte definitiva é a totalidade da vida humana». Mas, apesar de nos últimos anos ter crescido o interesse pela obra da autora de Solidão, a verdade é que ainda não foi de todo vencida a barreira de silêncio ou de esquecimeno que envolve toda a sua obra, embora a edição em curso dos seus livros (de que Solidão II é o décimo título a ser incluído nesta edição das "Obras de Irene Lisboa") possa e deva consentir que os leitores de hoje se aproximem e descubram os segredos e prazer da leitura, porque no conjunto da sua obra, a autora de Uma Mão Cheia de Nada bem merece ser permanentemente colocada na primeira linha da nossa literatura, como um dos poucos escritores portugueses que conseguiram, com uma persistência tão corajosa e uma generosidade sem limites, redescobrir o amor das coisas simples, do dia-a-dia sem história, dos próprios actos fugazes ou na aparência quase sem importância de um quotidiano vivido em sobressalto. A apreensão lúcida e desapiedada na fixação dos matizes que o sol da vida a todo o instante clarifica, a virilidade quase masculina e o atrevimento de captar, crua e corajosamente, tantíssimas vezes, a realidade de uma vida suportada com heroísmo e arrogância, sempre em solidão, tudo isso faz a grandeza de uma Mulher que nasceu para a literatura, de uma Escritora que foi vencida pela «fada má» da sua estrela, mas soube suportar tudo como remédio talvez para as grandezas tornadas misérias de um dia e outro dia, deixando uma obra literária feita de generosidade e de amor pelos outros, repetimos, onde o que é vivido poucas vezes se transfigura através de um processo literário que que se relaciona mais com a sua própria intimidade do que com a literatura no sentido em que esta se entende (e aceita) tantas vezes, sem fazer grande sentido. Mas a verdade é que a obra de Irene Lisboa, sendo o retrato exacto de uma vida mártir-e-glória-de-si-mesma, atinge momentos raros de expressão humana vivida e sentida por dentro, é a transposição em termos precisos e verdadeiros de um mundo construído na amargura dos dias, na existência de uma alma apenas entregue a si própria, vivendo as dores e sofrimentos de toda a gente do mundo que a rodeava, solidária e solitária, acabando por erguer uma obra à imagem e semelhança da sua vida. Mas, sendo os dois volumes de Solidão uma «obra única e um belo documento de literatura humana», na opinião crítica de Gaspar Simões, é interessante salientar que, em plena época de crise, onde todos os valores do espírito se negociavam em desapiedadas e tremendas intrigas políticas, Irene Lisboa teve a coragem de enfrentar e suportar, com profunda e serena altivez e humildade, a certeza de ser uma alma despaisada na própria terra e no meio dos seus contemporâneos. E, quando em 1974, nesse ano primeiro de um País em liberdade, como no fundo Irene Lisboa sempre desejou e confessou aos poucos amigos que andaram na sua roda, se publicou a primeira edição de Solidão-II: um livro que, sem surpreender muita gente, é a obra de uma escritora que, num tempo bem diferente e sem liberdade de expressão, pudera mesmo assim manifestar todos os anseios, desesperos e alegrias, porque acreditava num mundo melhor e mais justo, feito à imagem e semelhança dos homens. Como o seu primeiro livro do mesmo título, publicado em 1939 com o pseudónimo de João Falco e o subtítulo de «Notas do Punho de Uma Mulher», Solidão-II é uma espécie de diário íntimo, onde Irene Lisboa, na sua habitual linguagem directa e sincera, dá a conhecer novos fragmentos íntimos e literários da sua personalidade de escritora. As duas partes mais importantes deste livro, «Queixa» e «Deploração», revelam-se como duas partes de um todo que não está apenas nestas páginas de Solidão, mas se reparte e se faz ouvir em muitos outros dos seus livros que agora têm sido reeditados. Repositório de impressões ao longo de uma vida de sofrimento e desilusão, enfim, de abandono e entrega a si mesma, Irene Lisboa fala de histórias amargas e humanas em redor de uma sentida e reinventada solidão, denotando esse travo amargo de uma Mulher que, ao queixar-se de si própria, se queixa afinal das queixas do mundo e da vida que tanto lhe pesaram. É realmente um livro admirável se se pensar no tempo em que foi escrito, mas que ainda nos propõe uma leitura renovada e actual de um mundo lisboeta fechado em si mesmo, mas cuja leitura confirma, custe a quem custar, estar Irene Lisboa viva e presente a nosso lado, por direito próprio, na primeira linha dos grandes escritores que é urgente reler ou conhecer. E, tal como observa Paula Morão no final do prefácio a esta edição, devemos relembrar que, «compondo em forma sequencial este livro de final de vida, os textos assim ordenados cerram a obra sobre o melancólico signo da intimidade e da auto-análise que nunca deixou de lhe servir de pano de fundo» e «por entre os escolhos da fraca tradição desses escritos entre nós, a obra de Irene ergue-se como uma pedra-de-toque inquestionável». Serafim Ferreira IRENE LISBOA SOLIDÃO II, 2ª. edição Prefácio de Paula Morão Ed. Presença / Lisboa, 1999.
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