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Luiza Neto Jorge - Uma Voz Ainda "Sitiada"

No ano em que passam dez anos sobre a sua morte, lembro como conheci Luiza Neto Jorge nos anos 60 e sei das traduções que lhe confiei quando tive responsabilidades literárias na "Editora Ulisseia" e assim pôde transpor para português, com todo o rigor e atenção reconhecidas, romances de Boris Vian, Witold Gombrowicz ou Raymond Queneau. Mas lembro ainda como acompanhei de perto o seu percurso poético, por desde muito cedo entender que a autora de Terra Imóvel se tornara, por direito próprio, uma das vozes mais pessoais e comunicantes da sua geração.
Ligada ao grupo de "Poesia-61 (com Fiama Hasse Pais Brandão, Maria Teresa Horta, Gastão Cruz e Casimiro de Brito), que abriu, com um certo "espírito de corpo", novas perspectivas na poesia portuguesa e inovou as tendências abertas pelas obras do segundo neo-realismo dos anos 50, depois de Quarta Dimensão (1961), Luiza Neto Jorge concretizou uma poesia de reflexão do "acto poético", revelando uma lúcida consciência que nunca lhe roubara a espontaneidade criadora e a acção exercida sobre a linguagem, em forma e alteridade de um "discurso" tecido a partir da compreensão do real, e fez da sua poesia esse "cosmos" vivencial que se alicerça na palavra e numa utilização rigorosa da linguagem como instrumento expressivo dos lugares e objectos sitiados pela funda memória das coisas, artífice do seu destino e no seu tempo: Atento agora ao traço, / corrijo o mais da matéria, / que eu, artífice, colho / o que de mim alimenta, / falo do que estou sendo, / da sua mão em desordem, / dos passos das lágrimas baixas / que se vão constituindo. Mas é sobretudo uma poesia que a si mesma se domina e se constrói, poema a poema, por saber de ciência certa que "o poeta é um animal longo / desde a infância", como "homenagem póstuma" ao imaginário da vida e da morte, na fugidia certeza de estar e de ser, de pensar e viver, enfim, ter clara consciência e conhecimento de que "o poema ensina a cair / sobre os vários solos / desde perder o chão repentino sob os pés / como se perde os sentidos numa queda de amor".
Poesia que exprime por vezes, em tons de nítida amargura, uma experiência particular de eternidade e onde se redescobrem as cores claras da solidão e da ausência porque a sua "casa do mundo" se povoa de outras sombras e objectos, o "discurso" poético de Luiza Neto Jorge atravessa os sítios sitiados de um viver que foi de absoluta discreção, consciente de um falar para se ouvir, de um acto de escrita que fosse o preencher das horas e permitisse esse gesto pessoal de renovar a própria realidade ou o próprio meio circundante de relações sempre cúmplices: "A tranquilidade de um sítio é como / o limiar náutico da beleza / esse reduto assaltado isso / que não existe talvez / que ninguém resumiu com ardor / com total tranquilidade, / mesmo a dormir".
Voz marcante da sua geração, nos poucos títulos publicados e alguns dispersos ou inéditos "recuperados" na edição de toda a sua Poesia (1994), a "poética" de Luiza Neto Jorge merece ser estudada na complexidade verbal do seu discurso e no sentido oculto dos "artifícios" ou "lugares" que importa decifrar para assim responder às interrogações que nunca deixa de colocar e remontam, nas linhas cruzadas da sua expressividade, aos poemas de "Terra Imóvel": "Quem me lavará antes da morte? / Quem perfumará meu corpo morto? / A mim casa quem me chorará?"
Voz de fogo que consumiu todos os desejos nos intervalos das muitas
traduções feitas com entusiasmo e um claro entendimento do acto literário criador, Luiza Neto Jorge (1939-1989) partiu na inevitabilidade da morte e na simplicidade de uma vida bem discreta: saber utilizar a palavra escrita como acto de comunicação e de expressão, ser o acto poético a atitude libertadora de outros sonhos e anseios, ou como já observou Ramos Rosa, afirmar-se "a um tempo contida e violenta, de uma extrema tensão, herdeira do surrealismo, mas, pela sua linguagem despojada e rigorosa, salva-se da tendência para o bizarro e a falsa fantasia, infundindo à construção poética toda a carga de um acto vital que é também uma violenta contestação do mundo social" . Ou ainda na confessada certeza de um dos últimos poemas publicados em finais de 1988: Não me quero com o tempo nem com a moda / olho como um deus para tudo de alto / mas zás! do motor corpo o mau ressalto / me faz a todo o passo errar a coda / Um poema deixo, ao retardador: / meia palavra a bom entendedor.
Mas, na hora de terem passado já dez anos sobre a sua morte física, é realmente justo que os leitores melhor conheçam a Poesia de Luiza Neto Jorge que, como declara Fernando Cabral Martins no seu prefácio, "é alguma coisa de mais íntimo e íntegro que a generalidade das teorias implicadas (do Simbolismo ao Surrealismo) ou dos textos citados (de Mallarmé a Cesariny) ou das ideias convocadas. É que a sua poesia se organiza por campos de motivos, os da pintura, da memória, do sexo, da morte, mas o seu tema é o da poesia, o dos poderes da palavra".

Serafim Ferreira
Crítico literário

Luiza Neto Jorge
POESIA
Ed.Assírio & Alvim / Lisboa.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 81
Ano 8, Junho 1999

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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