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Mário Dias dos Ramos - Ou a Crónica Como Intervenção

Natural da Maia, onde nasceu em 1935, Mário Dias Ramos estudou no Porto e aqui iniciou a sua carreira literária e jornalística em finais dos anos 50, colaborando com regularidade em jornais e revistas literárias de que foi redactor ou chefe de redacção, crítico de televisão e de teatro e crítico literário após se ter radicado na capital em 1962. Ao longo de vinte anos, dedicou-se à produção e realização de séries televisivas na área cultural, sendo responsável por programas dedicados a Eça de Queirós, Teixeira de Pascoaes, José Marmelo e Silva, Vergílio Ferreira, António Gedeão e outros, destacando-se ainda, já depois de Abril/74, na realização de programas de divulgação como "Caminhos da Terra Portuguesa", "Ler Portugal" ou "Festas e Romarias de Portugal". Esteve também ligado ao surto do "novo romance" entre nós, em activa participação na defesa dos valores estéticos e literários daquela corrente (na companhia de Alfredo Margarido e Artur Portela Filho) e dentro desses postulados pôde escrever um excelente romance - O Logro (1963) -, saudado com entusiasmo por críticos como João Gaspar Simões, Álvaro Salema, Natércia Freire e Amândio César.
Espírito polivalente, mas disperso na consolidação da sua obra, Mário Dias Ramos tem-se repartido por diferentes modos de expressão que bem evidenciam o sentido fragmentário de uma verdadeira vocação literária, mas nos últimos anos tem persistido com regularidade na crónica de intervenção social, cultural e política, de que dá boa conta no seu livro Mandarins & Protozoários, selecção de crónicas publicadas no "Correio do Minho" entre 1993 e 1995.
Não deixando de intervir na vida pública, o autor de A Palavra Nua encontrou pelos caminhos da crónica a forma mais directa de dialogar com os leitores, porque no imediatismo da escrita e da publicação regular nas colunas do "Correio do Minho" o que se filtra nesse modo de comunicação é ainda um propositado sentido de apontar, denunciar, testemunhar ou proclamar o que defende, pensa ou combate. Não se trata de fazer pela escrita assim tão interventiva ou beligerante apenas uma certa "campanha alegre" que deseje fixar, à maneira de Eça, Fialho ou Ramalho, o sentido quotidiano do que se passa à volta, mas antes como a atitude de quem, no dizer de Baptista-Bastos, na sua coerência militância jornalística pelo correr dos anos, "mergulha no sonho e na esperança ocultos pelo seu ardor militante que se regista na agitação procurada, na guerrilha que nunca abandonou", mas sempre se afirma "contra a violência, contra a decomposição, contra aquilo de que não gosta".
E, por essa atitude clara e frontalmente assumida, o Autor se mostra como um impenitente cronista de outras farpas que, por mal dos nossos pecados, continuam ainda a fazer sentido no mundo em que vivemos tão cheio de constante ressonância, por entre atavismos de toda a ordem, sejam eles culturais ou mentais. E, esgrimindo em todos os sentidos, não poupando os que devem ser criticados (políticos ou autarcas, ideólogos de trazer por casa ou até falsos preconceitos de uma "doutorice" ou "snobismo" que sabe fustigar com impiedade e um acentuada ironia), tem clara consciência de que as crónicas dos jornais pouco mais duram e recolhê-las neste braçado de páginas em forma de livro é talvez a forma mais singular de reabilitar hoje o sentido da crónica, quando esse exercício literário se faz com um saber de experiência feito, como no caso de Mário Dias Ramos, que coloca na mira da sua intervenção ou crítica que censura ou ridiculariza, sejam eles sacripantas, políticos ou vira-casacas, talvez mesmo pescadores de águas turvas, porque quase sempre as suas flechas acertam em cabeças bem-pensantes de um tempo português que, vinte e cinco anos depois de Abril, exige ainda uma renovada mudança de mentalidade ou de atitude perante a vida e o mundo.
Dentro dos valores estéticos e literários que sabe defender, Mário Dias Ramos pretende afirmar-se, nas crónicas agora reunidas em Mandarins & Protozoários, como arauto ou cronista que neste país de gente muito bisonha (dizia Garrett que "a terra é pequena e a gente dela não é grande") e ainda de dedo apontado revela ter lúcida consciência de haver entre nós muita gente que proclama todos os vícios como se fossem virtudes ou assume atitudes que de todo não deixam de ser pavoneantes na afirmação pessoal e social tantas vezes ridículas ou denunciadoras da mais evidente menoridade mental. Mas também a tempo de fazer o elogio de poetas por quem sempre denotou uma viva e sincera admiração (Jorge de Sena, José Régio ou Carlos Cunha) e saber assim que, se tem pregado no deserto ou não, isso pouco importa. Mas fica connosco, na leitura destas crónicas, a forma exemplar como pela escrita de intervenção Mário Dias Ramos soube usar e abusar da crónica literária no sentido da plena reabilitação aos olhos dos leitores.

Serafim Ferreira
crítico literário


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 80
Ano 8, Maio 1999

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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