J. Rentes de Carvalho deve ser o escritor português mais conhecido na Holanda, onde vive há quarenta anos como professor de Literatura, apesar de ter nascido bem perto das águas calmas do antigo Douro (Vila Nova de Gaia, 1930), numa tarde quente de Maio em que Deus criou o mundo, como pudera anotar nas suas memórias, mas grande parte da infância e adolescência foi passada na aldeia de Estevais, em Mogadouro. Não se exilou no país das tulipas por escolha própria, mas nos acasos da sorte e de alguma aventura pessoal, porque seguiu para lá como diplomata brasileiro, sem passaporte português, e pouco depois passou a vender materiais de construção e foi negociante de café, para em 1964 ingressar na Universidade onde leccionou durante mais de trinta anos, ou seja, até à idade da reforma. Estreando-se na literatura com o romance Montedor (1968), prefaciado por António José Saraiva, parece ter entrado com o pé direito, porque este livro, bem mordaz e irónico, retrata um ambiente social pequeno-burguês, em que coloca em evidência um processo de relações humanas pelo desdobrar de recordações que derivam da sua adolescência. Trata-se de um romance de amor e ao mesmo tempo de uma narrativa de costumes, em plena paisagem minhota, onde se vislumbra o dia a dia de uma cidade de província, com os seus contornos sociais, psicológicos e humanos. ("Por baixo da cama está a maleta onde guarda o vestido que preparou há anos e que lhe hão-de vestir como mortalha. Não me dá gana de lhe tocar porque me parece de mau agouro. Abro? Não abro? Se ela o guarda ali? Já as mãos vão adiante do pensamento, apalpo sem olhar, sinto a caixa num canto e não mo diga duas vezes. Queria-me sem pressas, sem tremuras, mas não evito que as mãos se embaralhem e quase forço o fecho, à bruta, não me dando conta que tenho de desatar o nó do fio que ela passou em volta, precaução simbólica acrescida duma medalha de São Bento, santo que livra a gente dos maus caminhos e acode aos pescadores sobre as águas do mar".) Longe da pátria e à distância de muitos anos, repara no tempo perdido e assim o faz ressaltar em imagens vivas, captando os sinais da experiência que guardou consigo, numa espécie de saudosismo que revive e se impõe nos traços das pessoas e lugares mais conhecidos, pela noção do tempo em que tudo se passa ou já passou, pela ambiência geográfica em que o romance se localiza, pela situação da personagem central que se vê constrangida a aceitar o que o acaso coloca no seu caminho: um casamento de conveniência para salvar a honra da família. Mas, na variedade dos seus contrastes, Montedor ergue-se talvez como alegoria de uma maneira ou arte de ser português, aqui ou em qualquer parte, e assim a história que se narra resulta na visão trágica e magoada de uma realidade profunda, encarada nos aspectos mais expressivos, para se afirmar como um romance de qualidade pela linguagem e segurança de estilo que Rentes de Carvalho evidenciou nesse primeiro livro de ficção, saudado desta forma por José Saramago em crítica na Seara Nova: "Não se acredita, e acontece. Arma-se o crítico da emoliente benevolência que um primeiro livro parece sempre reclamar, e descobre-se envergonhado a esconder a mal calhada atitude", porque Montedor revelava aspectos inesperadamente sólidos que conferiam um "quase esquecido prazer de uma linguagem em que a simplicidade vai de par com a riqueza, que não se exaure nem nos exaure, uma linguagem que decide sugerir e propor, em vez de explicar e impor". Radicado que está há tantos anos na Holanda, onde os seus livros têm conhecido grande êxito junto da crítica e dos leitores, embora em Portugal, apesar de três romances e um livro de contos publicados, o nome de Rentes de Carvalho não teve até hoje a atenção que merecia. Com a recente edição portuguesa de O Joalheiro, já publicado no país das tulipas em 1987, uma vez mais se evidencia nos seus diversos contos o sentido alegórico e irónico das histórias que sabe contar, não como recorrência a um passado que se perde nas terras e lugares por onde a vida se cumpriu, mas a verdade é que, como anotou Fernando Venâncio,"são em grande parte histórias em ambiente português, porque tanto evocam a infância duriense e transmontana como uma actualidade sobretudo nortenha". Mas sempre, dizemos nós, com esse propósito de fixar um quotidiano de raízes humanas e geográficas bem nossas, mesmo que as histórias de O Joalheiro em larga medida tenham sido inicialmente publicadas em jornais holandeses e quase todas elas escritas na primeira pessoa porque o autor por vezes confessa não lhe agradar nada escrever na terceira pessoa e ser isso "quase uma injustiça, o autor aí desaparece, não se assume risco nenhum", mas quando escreve na primeira pessoa toma efectiva responsabilidade por tudo quanto cada personagem diz. E, sendo como afirma "o único escritor português que os holandeses melhor conhecem", não só pela sua intervenção cultural a vários níveis, mas também pelas frequentes entrevistas em jornais e na televisão, Rentes de Carvalho tem erguido uma obra literária que, a par do seu labor universitário, reafirma esse sentimento nostálgico de sempre escrever em português, sem arrebiques que tornem difícil e complicada a sua expressão, mesmo que tudo "na escrita lhe seja obstáculo: a escolha dos vocábulos, o ritmo, o enredo, os diálogos, o significado e extensão das frases, a repetição das palavras", no intuito de a cada instante reescrever as suas histórias e poder confessar que tem "uma inveja danada sempre que ouve alguém dizer que escreveu uma novela em três semanas, um romance em três meses", na calada convicção de que os deuses o abandonaram nos fados da sua própria escrita, enquanto outros se mostram assim tão mimoseados. Mas, com a consciência tranquila de ter cumprido a sorte que a vida lhe traçou ou os desvairados caminhos que pôde conhecer em nos quase setenta anos de peregrinação, Rentes de Carvalho ainda declara acerca da sua vocação de escritor e do acto da própria escrita: "Escrever não é só contar, é também ajustar contas e vencer medos, deixar a esperança lançar raízes no solo da fantasia. Escrever é sonhar. Escrever é cobrir com a beleza o banal da sensaboria diária, é angústia e repouso. É o jogo de um só jogador, que ao mesmo tempo ganha, empata e perde". Por último, com esta edição de O Joalheiro, que é, sem dúvida, um livro de contos de admirável qualidade narrativa e literária na captação de histórias quotidianas repartidas pelas várias partes por onde os seus passos o levaram, sempre em redor de paixões amorosas, dramas passionais ou enredos homossexuais, esperamos que toda a obra ficcionista de Rentes de Carvalho seja realmente entendida na sua justa dimensão. Serafim Ferreira Crítico Literário / Lisboa J. Rentes de Carvalho O JOALHEIRO, contos Ed. Escritor / Lisboa, 1998.
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