em tradução portuguesa
Nos últimos tempos, sobretudo depois do êxito do filme O Carteiro, o nome e a obra de Pablo Neruda (Prémio Nobel de Literatura de 1971) volta a ocupar as primeiras páginas dos jornais e entre nós sucedem-se as edições dos seus livros, em edição integral ou em antologias, mesmo que a sua poesia continue a ser conhecida somente por um reduzido número de leitores. Mas a publicação de Canto Geral representa um esforço editorial digno de registo, não só pelo cuidado posto na edição, como também pela excelente qualidade da tradução de Albano Martins, que já assinou a dos Versos do Capitão, que obteve grande sucesso junto dos leitores de poesia. Livro de geração, pelo veemente protesto contra as injustiças sociais e políticas do continente sul-americano, Canto Geral é, sem dúvida, o livro mais emblemático de Neruda, que sem favor se deve colocar a par de outras obras épicas e visionárias de profunda extensão poética como A Divina Comédia (Dante), Os Lusíadas (Camões), O Paraíso Perdido (Milton), O Fausto (Goethe),Cantos Pisanos (Ezra Pound) ou Mensagem (Pessoa). Mas, mesmo como uma obra datada nas linhas essenciais do seu "discurso" comprometido com a realidade política e social vivida nos anos 40 em que foi escrito, Canto Geral ainda hoje se pode e deve entender como o "santo e a senha" de todos os problemas que se mantêm ou pelos sonhos e lutas em que tanta gente se empenha na conquista absoluta de uma plena democracia nos países latino-americanos. E, na profusão das suas abundantes referências, dos lugares e heróis evocados, dos conquistadores e libertadores enaltecidos, esta admirável obra de Neruda não poderá entender-se como uma bíblia para as gentes tão subalternizadas nos seus direitos, mas foi e deve continuar a ser entendida como um grito de luta e de esperança de um grande Poeta que em tudo e por tudo soube dar o seu mais sincero testemunho ou alcançar esse profundo sentimento testamentário que se respira nas várias partes de Canto Geral e sempre nesta certeza proclamada por Neruda: E a minha palavra nascerá de novo, talvez noutro tempo sem dores, sem os fios impuros que enredaram negras vegetações ao meu canto, e nas alturas arderá de novo o meu coração ardente e estrelado.
Galardoado com o Prémio Nobel em 1971, e cujo discurso proferido na Academia Sueca foi escrito em Paris em vários guardanapos de papel, contaria mais tarde a García Marquez, Pablo Neruda dispôs afinal de pouco tempo para gozar beneficiar da enorme alegria sentida por tão prestigiado galardão literário. Sim, vive ainda na memória de muita gente o pesadelo e as sombras de uma manhã negra e chuvosa de Setembro de 1973 em que o Chile - esse mesmo Chile tão comovidamente evocado nos poemas de Canto Geral - viveu e sofreu o calvário de tantos dias de dor e morte que abalaram o País de um a outro extremo e a morte de Pablo Neruda chegou no assalto e destruição da sua casa da Isla Negra pelas tropas às ordens desse general que sempre dará pelo nome de Pinochet e anda hoje nas bocas do mundo na perspectiva quase certa do seu julgamento pelos crimes praticados. E assim o Poeta de Canto Geral não resistiu aos tiros e desmandos da repressão militar que se abateu sobre Santiago em vagas tumultuosas de perseguições, prisões e muitas mortes provocadas por esse ódio sanguinário e sucumbiu de coração esfrangalhado, ainda na lembrança de outros massacres numa praça de Santiago do Chile em 28 de Janeiro de 1946 e assim poder clamar: Foi quando as mãos dos chilenos estenderam os dedos para a pampa, e com o coração em uníssono iria chegar a unidade das suas palavras: quando tu, povo, te preparavas para cantar uma velha canção onde se misturavam as lágrimas, a esperança e as dores: chegou a mão do verdugo e empapou de sangue a praça!
Por último, repetimos que, após ter traduzido Os Versos do Capitão, Albano Martins empreendeu com todo o rigor e cuidado a tradução deste denso e grandioso Canto Geral que, como Neruda um dia confessara, se arvorou e foi profundamente compreendido como amplo e vivíssimo retrato poético de todas as lutas e conflitos, triunfos e derrotas, perseguições e mortes ao longo da América Latina. Mas não limitando o seu trabalho apenas à tradução, Albano Martins valorizou-o ainda com pormenorizadas notas e um glossário para que o leitor de Neruda melhor compreenda as muitas referências históricas e culturais feitas ao longo de Canto Geral e desvende assim os estranhos nomes da fauna e da flora que cobre todo o continente latino-americano. Serafim Ferreira Crítico literário PABLO NERUDA CANTO GERAL Tradução, apresentação, glossário e notas de Albano Martins Ed. Campo das Letras / Porto, 1998.
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