Nesta circunstância solene de lançamento e apresentação do livro Na Lassidão do Sono, com o qual Leonilde Leal venceu a primeira edição do "Prémio de Poesia Raul de Carvalho", instituído pelo Município do Alvito em 1997, importa lembrar que depois da publicação da Obra Poética do autor de Realidade Branca, num primeiro volume que integra todos os 21 títulos editados durante a vida e ainda os dois livros saídos no mesmo ano da morte de Raul de Carvalho, se impõe, com todo o rigor e brevidade, a edição dos muitos poemas e textos que ficaram inéditos, alguns deles organizados pelo Poeta para imediata publicação (como no caso dos seus "diários" ou mesmo de livros como Célula e A Poesia é uma Arma). Na verdade, mais de catorze anos passados sobre a sua morte, e sabendo-se que em grande parte todos os inéditos estão nas mãos de seu Sobrinho que vive nesta vila de Alvito, não se entende muito bem porque é que continua por conhecer uma parte substancial da obra deixada por Raul de Carvalho que, como sabemos, foi um dos poetas mais significativos da segunda metade deste século português. Por todas as razões (e sob pena de se deixar cair ainda mais no esquecimento o Poeta de Elsinore que em vida conheceu o seu calvário de sacrifícios e duros amargos de boca na solidão e silêncio em que sempre pôde consolidar a sua Obra), é tempo e mais do que tempo para que o Município de Alvito se empenhe no apoio e divulgação dos muitos poemas e outros textos de Raul de Carvalho que estão por conhecer. Sabemos como foram longos esses anos de indiferença sofrida, mas não se deve nem se pode tolerar que continue a mesma vaga de esquecimento sobre um dos nomes mais expressivos da poesia portuguesa contemporânea que, por ter claramente criado uma poética torrencial e arrebatada, calorosa e serena, se afirma ainda hoje como um rio caudaloso que navega por águas que não deixam lixos acumulados nas margens que o percorrem. E assim devo lembrar uma vez mais com Eduardo Lourenço que "a outra metade da inesgotável imagem de Campos, recriação e aprofundamento original de uma similar sensibilidade, revive na obra de Raul de Carvalho, um dos mais autênticos e puros poetas do seu e nosso tempo. A torrente admirável do seu lirismo encobre um pouco o secreto gesto que nela está empurrando sem cessar a 'solidão do homem para um ponto que fica algures no universo'. Na sua poesia se unificam e resgatam até os bocados a mais que havia na jarra definitivamente partida de Pessoa". Entre os livros que se apresentaram a concurso na primeira edição do "Prémio de Poesia Raul de Carvalho", o júri destacou com todo o mérito este livro de que me cabe dizer aqui algumas palavras de apreciação crítica, não só como um dos elementos do júri que galardoou Na Lassidão do Sono, mas antes por ter da obra literária de Leonilde Leal um entendimento muito próprio e saber como este livro de poemas (ou um livro que se pode ler como um único poema desdobrado em várias e diferentes formas de respiração poética) corresponde a esse domínio de escrita feminina que a autora de Dissâmara tem prosseguido desde há alguns anos e, sobretudo, pelo modo muito pessoal como sabe falar de sentimentos e emoções na candura das pequenas coisas em seu redor e ainda pela contenção expressiva e a forma comovida como valoriza todos os gestos simples ou os rituais de um quotidiano ao rés das águas e da vida. Firme no propósito de se servir de uma escrita claramente pessoal na transfiguração e transposição de um mundo construído na amargura dos dias e dos anos, no conhecimento da dor e existência de uma alma entregue a si mesma, ou vivendo e desvendando os males e sofrimentos das gentes que bem conhece, Leonilde Leal tem de facto consolidado uma obra literária à imagem e semelhança da própria vida, porque sempre se mostra solidária e solitária no plano textual e na atitude de saber definir os contornos físicos e psicológicos das personagens que convoca pela verosimilhança narrativa tão presente nos contos e romances ou nas páginas de Diário Meio Inventado, publicado em 1996. Inserido na mesma linha de intimidade e desabafo que ressoa ainda dos anteriores poemas de Ementas do Dia Poético, este novo livro de Leonilde Leal insiste na mesma matéria vocabular de uma enunciação nitidamente feminina, marcada por um ritmo expressivo pessoal e comovido, sincero e táctil, como se a sua palavra poética, na insistência de imagens que buscam a essência das coisas da vida, desejasse tão-só desvendar esse jogo amoroso em que tudo se configura sem nenhuma ambiguidade ou mesmo através de uma certa ousadia feita de profunda sinceridade emotiva: Os teus lábios em nada se sentem melhor que nos meus mamilos e as tuas íris gritam o caminho dos pinheiros.
Mas, na circunstancialidade da sua expressão contida ou vislumbrada de forma bastante nítida, a poesia de Leonilde Leal arvora-se como matriz de uma voz que se deseja pessoal e única no modo de abordar sentimentos e emoções ou, como afirma Maria Luísa Leal no seu prefácio a Na Lassidão do Sono, "vive da contiguidade metonímica, e a dificuldade de captar o sentido de alguns versos nasce do facto de, ao lado do consciente, poder estar o inconsciente, de um pensamento poder ser atravessado por uma paisagem, de um conteúdo simbólico poder ser dissolvido numa impressão táctil". Porém, acrescentamos nós, é nesse duplo olhar da própria realidade que se espelha o sentido mais profundo da poesia de Leonilde Leal, de que este livro é o seu reflexo mais evidente e depurado, porque através de linhas de certo modo desencontradas a sua voz assim se irmana com a de Raul de Carvalho por ser idêntico esse mesmo sentimento de entender a vida nas imagens mais justas da sua expressividade poética. E por isso sinceramente saudamos este Na Lassidão do Sono como prenúncio ou confirmação de uma voz que desta forma se alia ao coro de tantas outras vozes de expressão feminina tão constantes na poesia portuguesa dos últimos vinte ou trinta anos. Serafim Ferreira
Apresentação do livro
NA LASSIDÃO DO SONO, de Leonilde Leal Centro Cultural de Alvito - 3.Outubro.1998.
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