na hora da consagração de José Saramago Nesta hora de justa consagração da obra literária de José Saramago, e na lembrança de o Prémio Nobel da Literatura tantas vezes ter sido atribuído a obras e autores de quem já nos esquecemos, debruço-me sobre o teclado do computador, olho o ecrã ainda em branco e pergunto-me sobre o que poderei escrever após na releitura desta História do Cerco de Lisboa, mas o revisor Raimundo olha-me me soslaio, um tanto desconfiado e diz-me que certamente também eu irei falar dos cruzados que não ajudaram em nada no cerco de Lisboa, quando el-rei dom Afonso o primeiro por aqui andava na caça dos moiros, ou dos fenícios, ou atrás das saias de dona Sancha das Astúrias, e a cerca moura em redor do Castelo de São Jorge menos rodeada estava de casas, porque antes dos cristãos e dos almuadens chegarem a esta enseada amena, ou lissabona romana de outras vias cruzadas de sonhos e projectos, já a antiga Olissipo se encontrava ou morava no sítio em que hoje toda a gente a conhece, sim, dizia eu que tinha acabado de perguntar ao revisor Raimundo se por acaso sabia de que livro me apetecia falar, e ele, muito senhor do seu papel profissional de revisor, rodeado de prontuários e dicionários de consulta obrigatória para eliminar as dúvidas que sempre lhe ocorram ao espírito, fechado no seu canto, um escritório pequeno em casa modesta que fica mesmo, imaginem, na rua do Milagre de Santo António, bem perto da rua da Padaria ou das Escadas de São Crispim, que em muitos anos de ser aqui morador se não cansara de subir, diz-me ele, agora muito a sério, Certamente irás falar da História da Cerca Moura, que há muitos anos escrevera o digníssimo amigo de Lisboa que foi Vieira de Silva, dizia-me Raimundo em tom grave e sério, Sim, vais falar da História da Cerca Moura de Vieira da Silva, e eu logo respondo, meio a rir meio a brincar, que da Vieira da Silva só conheço alguns quadros e de todos ainda me lembro bem por ter visitado em tempos uma grande exposição na Gulbenkian, e depressa Raimundo insiste em dizer que Vieira da Silva era outro, não a pintora de quem me recordo, porque engenheiro de profissão se dedicara em anos demorados de grande paixão aos estudos mais conhecidos, mas eu teimo, Não, não sei de quem se trata, mas sempre digo que não é desse livro que desejo falar, e o revisor Raimundo, atingido na sua competência profissional, porque em instante de mansa loucura, confessou depois ao director literário da editora para a qual trabalhava há muitos anos, que decidira atropelar o sentido do texto que tinha na sua frente, e um rotundo Não, em caligrafia visível e legível, sem que nenhum delatur a confundisse, alterara assim a intenção da prosa desse autor desconhecido do século onze, ainda no tempo de el-rei senhor dom Afonso o primeiro e antes de Gutemberg ter chegado com essa confusão propositada que levantaria o uso dos caracteres móveis em meados do século quinze, embora se soubesse do seu aparecimento muitos anos antes por terras orientais da China e de outras paragens do Extremo Oriente, mas quando resolveram puxar as orelhas por terem dado com o gato, imperdoável era esse erro tão calamitoso num revisor cheio de escrúpulos e atento ao seu trabalho, Raimundo não sabia o que dizer ou confessar, andara quase toda a manhã pelas ruelas do Bairro Alto, indo de sua casa na dita rua do Milagre de Santo António, nervoso e receoso do que pudesse acontecer, talvez a perda do emprego, mas a verdade é que não sabia explicar com clareza o que lhe passou pela cabeça no momento de colocar esse Não que assim desvirtuava o sentido do texto, talvez estivesse a pensar na morte da bezerra ou por ter a certeza de que realmente os cruzados não ajudaram em nada, disso rezava a História, mas não o autor daquela História do Cerco de Lisboa no reinado do senhor dom Afonso Henriques, e assim o revisor Raimundo se atormentava com a eventualidade de ser julgado sem dó nem piedade, e pensava consigo que o erro cometido não era para menos, nenhuma errata o poderia salvar desse desastre, e só a reimpressão de um caderno custaria, se porventura tivesse de indemnizar a editora, largos rios de dinheiro que não tinha, mas no caminho até ao Bairro Alto também pensava que talvez os seus juízes não fossem tão carrascos como os do Tribunal da Santa Inquisição e tivessem outra compreensão para tal acto praticado se acaso o soubesse claramente explicar, e eu pergunto uma vez mais, Sabes de que livro desejo aqui falar?, e o revisor Raimundo, que só pensa no livro em que acabara de cometer um atropelo do tamanho de uma casa, colocando um Não quando não podia nem devia fazer semelhante coisa, porque o autor da História do Cerco de Lisboa afirmava, peremptoriamente, para quem o lesse e com o saber da sua provada erudição e competência na matéria, que os cruzados tinham realmente ajudado o rei dom Afonso na conquista de Lisboa e por aí a História se devia escrever nas linhas direitas com que todo esse caminho ficara marcado de tantos atropelos assaltos guerras lutas dissidências entre reis e rainhas, duques e princesas casamentos conveniências usurpação de terras e conquistas por outras paragens, mesmo na senda das descobertas marítimas que deram, dizia o mesmo historiador do Cerco de Lisboa, e não esse Vieira da Silva da Cerca Moura, mas o historiador anónimo do Cerco de que sempre se haveria de falar pelos séculos dos séculos, amén, de todas as descobertas que deram, ia eu a dizer, novos mundos ao mundo, e se ao cheiro da canela e da pimenta o reino se despovoava, na clara lembrança de Sá de Miranda, sabido era e hoje se recorda que essas gentes se mostravam ainda como filhas e filhos, primas e primos embora afastados desse guerreiros da Lisboa da moirama e dos cruzados que tanto ajudaram na conquista da fé cristã e na dilatação do império, pudera!,porque nunca fizemos as coisas pela metade, é dos livros, toda a gente sabe e até esse historiador anónimo da História da Cerca Moura de quem falo, não para palavrar com o Narrador, recuperando nas páginas de um livro que há muito circula por aí nas mãos de muita gente por serem escassos os maravedis do seu preço, alargando a lição de história e da sua gente, desde Afonso o primeiro até ao revisor Raimundo, que neste livro se arvora como descobridor de outras façanhas de bravo e valente soldado português, talvez um chveik de trazer por casa, é certo, mas corajoso no atrevimento e ousadia que o fizeram andar por tantas paragens, declara Raimundo que decidiu em boa hora reescrever, numa escrita solta e ainda sem computador ou processador de texto, e em caligrafia cursiva e bem desenhada e num estilo legível que aprendera num curso nocturno na escola comercial Veiga Beirão há muitos anos, sim, reescreve e emenda, com toda a liberdade, os erros da próprio História, não por desejar escrever direito por linhas tortas, repito, mas tão-só por haver a oportunidade de religar todos os factos e ter do passado, entre um não e um sim que não escamoteia, portanto, sem qualquer intenção subjectiva ou metafísica, esse entendimento mais aberto e claro que de perto se relaciona com exactidão e pormenorizada noção do tempo passado à História que desde sempre lhe ensinaram, cheia de elogios erros incongruências heroísmos, marcada até por falsos heroísmos valentias e humilhações, em grandeza descritiva que afinal confirma que se os cruzados ajudaram ou não ajudaram na conquista de Lisboa aos mouros isso pouca importância poderá ter na compreensão da História de um passado comum ou das raízes da nossa identidade cultural, e Raimundo acrescenta irónico que num tempo de reconquista da Europa, sem haver mais afonsos dispostos a lutar contra os moiros, ter ou não cruzados a nosso lado pouco importa, porque euros se chamam hoje os maravedis da comunidade para que se apela e acena, de olho lacrimejante ou bandeja na mão, talvez para se entrar no Guinesse da pedinchice, não sei, e disso mesmo não nos esclarece a História do Cerco de Lisboa que o revisor Raimundo decidiu reescrever nem aquela em que, dizem os entendidos, se cometeu o erro histórico grave de haver um Não que lhe altera todo o sentido na verdade e rigor das gentes e dos factos. E, na forma assim consentida de uma intertextualidade narrativa, sempre se fala pelas páginas dessa História do Cerco do tempo da moirama que é ainda o sentido de um claro pensamento oblíquo que o revisor Raimundo não sabe nem consegue explicar bem o que fosse, mas lhe serviu às mil maravilhas para justificar a intencional reescrita no emendar da História, pelas muitas dúvidas levantadas por Osberno e que frei António Brandão não conseguiu explicar com nitidez nas páginas da sua Crónica do Próprio Dom Afonso Henriques se os cruzados ajudaram ou não as tropas do rei dom Afonso na reconquista da cidade aos moiros, porque certos autores, por uma adquirida convicção ou compleição espiritual naturalmente pouco dada a imaginações pacientes, diz o Narrador da História do Cerco de Lisboa que o revisor Raimundo teima em emendar ou corrigir, porque certos autores, diz ele a quem o quiser escutar, aborrecem a evidência de não ser sempre linear e explícita a relação entre aquilo a que chamamos causa e o que, por vir depois, chamamos efeito, e logo o revisor Raimundo me atormenta o ouvido, dizendo, Lá está ele com a mania das frases paradoxais, e a isso eu chamo realmente uma forma de pensamento oblíquo, por ser, afirmo agora, nesse propositado sentido crítico e irónico em que se espelha o seu modo pessoalíssimo de entender a História, de a entender e a explicar, não na forma de sermão como o celebrado padre António Vieira tanto gostava de fazer, mas na deliberada intenção de serem longos os rodeios de que usa e cuida, no irresistível jeito de saber que as palavras têm de puxar umas pelas outras, parecendo que não fazem mais do que seguir o desejo de quem finalmente terá de responder por elas, mas levando-as ao engano, quantas vezes, a ponto de deixarem ver a ponta da narrativa, abandonada num lugar sem nome e sem história, o puro discurso sem causa nem objectivo. Mas, aqui chegado, diz ainda o revisor Raimundo que a história deste cerco seria talvez bem diferente se el-rei dom Afonso tivesse conseguido o dinheiro necessário para ter os salários em dia e atender os recados que os capitães mandavam para liquidar os soldos mais atrasados, porque se estava relaxando a disciplina e a tropa resmungava quando os sargentos mandavam atacar. E a verdade é que não sei se tinha ou não toda a razão para dizer o que dizia, já que a vida depois se encarregara de dispor aquilo mesmo que foi a mão de Deus que colocou no caminho, diziam os almuadens do alto da almadena, na estupenda lição de todas as coisas, e saber-se ainda que os erros cometidos a todo o instante se podem corrigir, Só a morte não tem emenda, murmura o revisor Raimundo meio zangado por ter trazido o discurso por este descaminho, e isso não é verdade, porque sempre posso lembrar o que o Narrador da História do Cerco de Lisboa em dado passo declara no acto de repetir as palavras que vamos inventando, as palavras todas com que temos de dizer tudo, bendição e maldição, até o que o nome não terá nunca, inominável será, pois, no propósito crítico e irónico, repito, de desmantelar a História nos passos e lutas cruzadas de outros cruzados, quer tivessem ou não ajudado na reconquista, lembra-me ainda o revisor Raimundo que, sabe-se lá a sorte que o destino nos reserva, entretanto ficou enamorado de Maria Sara, a mesma pessoa de quem antes tivera medo, não por ser a mulher que faltava na sua casa modesta e ficava mesmo nas Escadas de São Crispim, mas por ser ela que, dando conta do erro cometido no claro entendimento da História do Cerco, lhe oferecera o único exemplar em que a errata não podia surtir qualquer efeito, portanto, era o único exemplar da obra que só ele poderia reescrever, e isso fez depois com muito zelo e aplicação, como claramente se entende nas últimas páginas do livro, não sem que antes por aí se cruzassem casamentos de outras conveniências, talvez apenas narrativas, mas naturalmente porque o desfecho conseguido pôde servir as intenções do Narrador, com descarada ironia nas frechas abertas nos muros das muralhas, de tal modo que, quando soara por toda a parte a notícia de que os moiros festejavam já a destruição das torres dentro do Castelo, logo o revisor Raimundo pensou que teriam sido as torres das Amoreiras que derruíram, mas também no milagre acontecido de ter nos braços o corpo abandonado de Maria Sara que, por fim, inundou de sol a modesta casa que ficava na rua do Milagre de Santo António, sem que antes me não dissesse, ovante no orgulho do seu triunfo, Olha, todas as metáforas sobre o tempo e a fatalidade são trágicas, e ao mesmo tempo inúteis, talvez não precisamente por estas palavras, mas o que mais verdadeiramente conta é o seu próprio sentido, e isso ele anotou, contente de tê-lo pensado. E assim mesmo é a mitologia do espírito e formação da nacionalidade, no heroísmo das conquistas ou na fixação desta faixa geográfica cujos limites quase se não alteraram, que nas páginas desta História do Cerco de Lisboa se redescobre o acto de o Narrador conduzir a sua barca a bom porto, nos sucessivos encadeamentos narrativos e nas muitas referências culturais, mas sobretudo nesse sentido marcadamente irónico e crítico de fazer entender a História de outro modo. E, na persistência com que escreveu os seus livros nestes últimos vinte anos, na dúvida metódica de querer averiguar se é o romance que leva o homem a esquecer-se ou se é a impossibilidade do esquecimento que o leva a escrever romances, posso dizer, e já o revisor Raimundo me não escuta, que História do Cerco de Lisboa se enquadra, propositadamente, nesse quadro de revisitar ou rever a História na efémera e dúplice visão do sim e do não, do avesso e do direito, do que foi verdade e mentira, mas sempre no rasto conseguido de na multiplicidade formal e literária de que José Saramago se serve reincidir na desmontagem ou na desconstrução de algumas das nossas mitologias maiores ou menores ao longo dos tempos. E, no claro propósito de desmistificar as várias mitologias, devo lembrar que se em Levantado do Chão permanece a tão falada diáspora portuguesa ou o sentido do nosso exílio colectivo, se em Memorial do Convento é a mania das grandezas que ganha foros de verdade no tempo e reinado do senhor dom João quinto, se no Ano da Morte de Ricardo Reis é a religião pessoana que se ergue como pano de fundo de uma Lisboa cinzenta e amodorrada no salazarismo reinante, se em Jangada de Pedra é a ideia de um iberismo que tem força e domina toda a narrativa, se no Evangelho Segundo Jesus Cristo é ainda o acerto de contas com um sentimento religioso que veio da infância nas suas terras ribatejanas, ou se em Todos os Nomes o nome que se tem se consubstancia através de uma realidade pessoal e próxima que se não pode alterar ou na firme identidade que para sempre se possui, em História do Cerco de Lisboa é essa mitologia do espírito e formação da nacionalidade, no heroísmo das conquistas ou na fixação desta faixa geográfica, cujos limites quase se não alterariam, que como leitor redescubro esse modo fascinante e empolgante de, mesmo com certos atropelos da escrita, sempre saber conduzir a sua barca a bom porto, nos sucessivos encadeamentos narrativos, mas sobretudo pelo sentido irónico e crítico de fazer entender de outro modo a História. E, se porventura não é pouco o que se diz ou se narra, muita coisa não fica de fora, lembra-me ainda o revisor Raimundo, na atitude literária e ficcional de José Saramago sempre olhar a História na consabida lição do Livro dos Conselhos de que "enquanto não alcançares a verdade, não poderás corrigi-la". Daí, pois, a grandeza e a aceitação literária de toda a obra de José Saramago ser reconhecida nesta hora de receber o Prémio Nobel da Literatura, quando os seus livros desde meados de oitenta começaram a traduzir-se em mais de vinte países e ser hoje objecto de importantes estudos críticos e teses de licenciatura em várias universidades. Sim, nesta hora alta da nossa Literatura, dizer que finalmente a honra maior de um Nobel chegou e ficou nas boas mãos do autor de História do Cerco de Lisboa. Outubro, 1998. Serafim Ferreira
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