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A Literatura em Questão

O escritor escreve, medita no que escreve, revê até ao cansaço aquilo que definitivamente (ou quase) publica. A obra surge, o leitor toma contacto com um mundo diferente do seu ou com o qual acaba tantas vezes por se identificar. O diálogo inicia-se, um eu distinto fala sempre no silêncio ou na solidão a outras vozes. O escritor possui o seu mundo próprio, vivido e sentido na sua peculiar maneira de ser, pensar e entender o mundo em redor. Mas o que apenas ao escritor realmente pertence é a obra que lhe demarca as raízes essenciais, um tom que será (deverá ser) diferente das outras vozes a quem fala ou sobre quem fala. Daí o desejo sincero e único de comunicar com os outros, procurar sair do seu casulo, do seu isolamento, penetrar nessa "solidão essencial" dos outros. E assim se inicia um diálogo que é vivo, se processa pela identidade do mesmo tom ou adesão a uma forma de discurso que, sendo pessoalíssima, não deixa de transmitir aos outros o segredo da sua criação. A literatura, no pleno e exacto sentido, é como sabemos a vida toda ou fragmentada em retalhos deste e daquele, de acontecimentos vividos e sentidos por toda a gente. Penetra na intimidade do próprio ser, abrange e comporta tudo e todos. Forma de comunicação directa com o seu leitor (que pode ser apenas um único, como desejava André Gide), o livro é sempre a imagem por fora do que fala e comove por dentro o outro - o leitor. Por isso, a literatura é a todo o momento posta em questão - ontem e hoje: para que serve?, o que é afinal a literatura?, qual a sua verdadeira função?, deve ou não ser actuante?, deve comunicar e participar?
Ora, para que serve a literatura e o que representa na nossa formação, sabemo-lo todos e sabe o leitor que sabe ler para lá do que aparentemente está escrito, que sabe olhar o espaço invisível onde o visível se vê, se sente, se grita e nos comove até ao sangue. A função da literatura é, de facto, ser actuante, no verdadeiro e profundo sentido, talvez mesmo em todos os sentidos. Que cada leitor se interrogue e veja se em si não actuou, de qualquer modo, um livro que leu e de que pouco ou muito gostou. O nível e grau de actuação ou de influência (seja política, filosófica, moral, estética, ideológica) está precisamente no modo como cada leitor sabe ler e aderir ao que o escritor lhe transmite, lhe oferece sem artifícios, a não ser os da sua própria arte. O espaço literário é aberto, total e absolutamente povoado: as visões, sonhos e fantasmas de todos nós, através da criação literária (e artística), transformam-se em valores que podem mesmo fazer "mudar a vida", como queria Rimbaud. Não é para agradar a ninguém que um homem se torna escritor, sofre pela sua arte, dá tudo por ela, se entrega em disponibilidade a uma realização humana como todas as outras, mas que é, sem dúvida, a representação da maior afirmação do homem.
E quantos escritores não se interrogam para que serve, afinal, o que escreveram, os anos que consumiram e desgastaram na criação de uma obra que pode ser esquecida (e existem tantos exemplos) ou mesmo desprezada, que por vezes não vence nem escapa ao silêncio de qualquer biblioteca. Mas dá prazer saber-se, por exemplo, que houve pelo menos um leitor que nos leu, compreendeu e aceitou. Sim, basta que o escritor encontre o seu leitor, um só que seja na intenção gideana, para que a função da obra literária se considere justificada. E esse é o seu segredo interior, talvez a sua forma mais directa e sentida de absoluta realização. Há alguns anos, num congresso de escritores, Sartre observara que "todo o escritor mente para dizer a verdade", e muita gente não entendeu ao certo o que significava essa afirmação. E, no entanto, ainda podemos proclamar (ou repetir) que qualquer escritor define sempre o seu próprio jogo, cumpre as regras que entende adequadas na retratação ou fixação de uma realidade que não pode ser mistificada nem mistificadora, antes transmutada ou redescoberta através de outros valores morais, sociais, estéticos ou filosóficos. E por isso o consagrado autor de O Ser e o Nada apontava o exemplo superior da obra de Franz Kafka para salientar que ele "escreveu alguns livros que tratavam unicamente de problemas pequeno-burgueses e particulares", mas lido na profundeza do seu sentido e intenção literária, o universo kafkiano abrira de facto as portas para essa totalidade narrativa que o romance moderno hoje reivindica por diferentes caminhos de expressão.
Por isso, a literatura é sempre posta em questão nos seus elementos essenciais: ser ou não uma forma de comunicação com os outros, ser ou não um modo único, singular e pessoal de transformar os modificar a vida. E assim o livro, qualquer livro, não pode nunca ser encarado como simples objecto de comércio, que as regras do "marketing" tantas vezes impõem de forma negativa. Porque ainda e sempre se exige, ontem e hoje, que a literatura seja (como é lógico que o seja num contexto humanista) na sua própria essência uma forma declarada, aberta e sincera de comunicabilidade e diálogo com os outros - e esses outros somos nós todos, aqueles que, como leitores, procuram em qualquer livro o modo de preencher esse vazio que a vida actual, agitada e sufocante, quase nos obriga a menosprezar ou pôr de lado. Sobretudo nestes tempos mediáticos de tudo se desejar pôr em causa pelas variadíssimas formas de comunicação ou de expressão criadora.

Serafim Ferreira


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 73
Ano 7, Outubro 1998

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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