Quando Alberto Ferreira publicou Diário de Édipo em 1965, iniciando uma incursão muito pessoal pelos caminhos da ficção narrativa de natureza histórica e filosófica, que se revelou como uma pedrada no charco na vaga literária que atravessava um período de águas mornas, foi saudado desta forma por Nuno Teixeira Neves no Suplemento Literário do Jornal de Notícias: "Não é muito frequente entre nós uma fidelidade racionalista coabitar com um dramático sentido da subjectividade, fornecendo a esta os instrumentos necessários para indagação e depois a expressão da sua problemática", por ser um "livro admirável e único, que aborda um dos problemas culturais mais básicos da evolução do 'homo sapiens': a síntese do sentimento com a razão, da intuição com o discurso, da família com a cidade". Na forma de estruturar esse livro como um "diário" em que os dias não eram contados e no modo de pretender interrogar o próprio destino, sem mergulhar numa certa retórica progressista vazia de conteúdo, Diário de Édipo era uma demorada confissão amorosa ou a "última coisa tangível, viva e ardente que resta à flor da terra queimada", mas abria a reflexão filosófica em redor de uma totalidade lírico-dialéctica que se mostrava evidente num ensaio disfarçado de romance a que não se retirava, sob nenhuma condição, esse sentido de ser voz e razão de uma perspectiva histórica que acreditava noutros valores e se impunha sem outras ambiguidades, mesmo que no livro perpassasse um certo idealismo marcado pela nossa "apagada e vil tristeza". E esse Édipo português, que se erguia à altura de uma utopia que esperava por melhores dias para de todo se cumprir, talvez por acreditar numa nova ou noutra pátria, consentia que de súbito se imaginasse como podia surgir "a manhã de outro dia, que nascem olhos para um ver original" ou como "um coro de carpideiras se dilui no ar insonoro" para não ser mais a tradicional lamentação dos nossos males e dos nossos vícios, mas o despertar de outros clamores que por uma vez decifrasse esse "enigma" que, na observação feita por José Marinho, "é essencial à auto-compreensão que nos define". Dividido entre a filosofia e a ficção, sobretudo com Diário de Édipo, Crise e com o recente romance Viagens no Reino da Mediocracia, Alberto Ferreira incarna o exemplo do intelectual que não cede a transigências fáceis e toda a sua obra se consolida dentro de uma posição moral que na literatura encontrou uma superior forma de expressão, longe de certa mediocracia e próximo de uma atitude consequente e coerente com os valores ideológicos que nunca deixou de ter em conta, talvez no exemplo das grandes figuras do nosso liberalismo, como Garrett, Herculano, Antero, Eça ou Oliveira Martins. Mas devemos anotar que neste romance Viagens no Reino da Mediocracia, reincidindo numa visão pessimista do mundo em que vive e é este recanto português à beira-mar plantado ("Na minha visão, o nosso país não é nada universal, nem há na nossa História acontecimentos marcantes, salvo os que levam D. João I ao trono e, depois, as Descobertas. Daí que, a partir de vários projectos, um dia me tenha lembrado de fazer um "Portugal ao Contrário"), fixa em termos de grande e profunda ironia o retrato amargo deste reino que é pobre e não tem emenda ou, se a tem em muitos aspectos, ainda continua a definir-se por hábitos e ideias, valores e preconceitos que não ultrapassam uma conhecida mediocridade ou se exprimem em situações e factos que pouco enriquecem a própria realidade social e cultural. E por isso assim proclama: "No país reina a mediocridade, fala-se o medíocre. Língua pastosa ou entaramelada, eloquência servil ou estereotipada, manejo cruel e rápido quando o interesse está ameaçado; coxo, calculado por baixo, se se trata do alheio. O medíocre vegeta em todas as pátrias e não é de nenhuma". Mas pelo claro sentido e espírito garrettiano que perpassa no seu romance (e não pode deixar de fazer-se o necessário paralelismo entre a visão romântica de Garrett em Viagens na Minha Terra e a visão crítica da nossa sociedade ou de um terrível sentimento de isolamento em que vivemos ao contrário desses belos tempos da Joaninha dos olhos verdes),Alberto Ferreira declara, por entre certo azedume ou razão atormentada, ter nítida consciência de que, quanto à filosofia ou à prosa de ficção que têm sido os domínios da sua expressão literária, não vale a perder tempo por esta terra ser pequena e a gente não ser grande. Sim, não o foi antes e ainda hoje não ultrapassou os sinais da mais evidente mediocracia que se espalha pelo reino. Profundo estudioso da segunda metade do século XIX português, e sobretudo dos problemas levantados pelo romantismo literário, toda a obra literária de Alberto Ferreira, no firme pendor filosófico das suas inquirições, se fundamenta na interpretação rigorosa dos impactos ideológicos e sociais e do sentido romântico que marcou a literatura portuguesa da segunda metade do século passado como de forma admirável deixou presente em Perspectiva do Romantismo Português (1971).E por isso devia existir outro entendimento dos leitores e da crítica em relação ao autor de Diário de Édipo que, desde 1990, sofrendo de uma grave doença que o não deixa sair de casa, ainda tem a força necessária para em Viagens no Reino da Mediocracia se confessar não ser afinal um "vencido da vida" e antes escritor atento ao mundo que o rodeia e soube retratar nas páginas deste último romance com um declarado pessimismo crítico, lúcido e violento. Serafim Ferreira Alberto Ferreira VIAGENS NO REINO DA MEDIOCRACIA Ed. Escritor / Lisboa, 1998.
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