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O ensino na Guiné-Bissau* Pintado a Negro e Cinza

 

À semelhança da maioria dos países africanos, o ensino público na Guiné-Bissau é marcado por carências a vários níveis. O parque escolar encontra-se muito degradado, grande parte das escolas não tem água e escasseia material de trabalho tão elementar como quadros escolares ou giz. Os professores estão longe de ver o seu trabalho reconhecido e recompensado. Alguns, já não recebem mesmo o salário há quase um ano. Um retrato a nú do terceiro maior país africano de língua oficial portuguesa, que muitos receiam venha a tornar-se francófono.
Presidente da mais representativa estrutura sindical docente da Guiné- Bissau, o Sindicato Nacional de Professores da Guiné-Bissau (SINAPROF), Luís Nancassa é uma das pessoas que melhor estará habilitada a falar dos problemas no ensino e das dificuldades com que diariamente (sobre)vivem professores e alunos. Para caracterizar a actual situação, usa uma única expressão: 'de mal a pior'.
A classe docente, se comparada com outras actividades profissionais de desempenho social, é uma das mais penalizadas na sociedade guineense. O vencimento médio de um professor é inferior a seis mil escudos. Alguns deles já não recebem qualquer vencimenero significativo de outros, formados há mais de três anos, ganham muito abaixo do seu índice de colocação. É caso para dizer que 'trabalhando para o futuro, recebem um salário do passado', ironiza Nancassa. 'É uma profissão para a qual se exige um esforço acrescido e uma grande dedicação, porque de contrário não se consegue trabalhar'.
Com o pouco que ganham, grande parte vê-se obrigado a exercer um duplo emprego, habitualmente ao serviço de escolas privadas, sendo esta, para muitos deles, a única garantia de um sustento digno. Não admira, assim, que existam professores recém-diplomados a trabalhar em Cabo Verde, Angola, Moçambique ou São Tomé e Príncipe, porque, além de não ganharem o suficiente, os professores também 'não são respeitados nos seus direitos', afirma.

Para defender os interesses da classe e reivindicar melhorias no sistema educativo, a SINAPROF (considerado como o primeiro sindicato livre e independente), nasce em 1992, pouco antes do período de abertura política. Até esse ano, a única estrutura reconhecida pelo governo era o sindicato oficial do partido, encarregado de nomear a direcção. Tal organização, no entanto, 'não foi criada pela vontade dos professores, mas fundado pelo governo para justificar a existência da União dos Trabalhadores da Guiné-Bissau, fundada em 1961 durante a guerra da independência'.
Para um país com cerca de um milhão de habitantes, existem cerca de 4500 professores. O número de sindicalizados no SINAPROF ascende a mais de 4100, representando uma margem superior a 90 por cento, traduzindo de forma inequívoca a sua implantação na classe. Os restantes professores, porém, simpatizam com a organização e 'quando são chamados a intervir e a lutar pelos seus direitos aderem à nossa causa'.

Aprender sem livros ou carteiras

As dificuldades enfrentadas pelos professores estendem-se, inevitavelmente, aos alunos. As crianças e os jovens do ensino básico estudam em condições muito precárias, sendo habitual 4 ou 5 alunos partilharem a mesma carteira e não haver giz fornecido pela escola. O número mínimo de alunos por professor, em qualquer estabelecimento de ensino, é de 35, podendo atingir um máximo de 50 em situações extremas. Da mesma forma, são raros os livros e os manuais didáticos postos à disposição, levando a que os professores, por iniciativa deles, se encarreguem da produção de apontamentos ou pequenos fascículos que distribuem pelos alunos.
Embora ligeiramente mais apetrechadas, as escolas do ensino secundário também não estão preparadas para 'acompanhar as exigências do século XXI', como refere o sindicalista. Neste sector de ensino, mais do que instalações satisfatórias, falta sobretudo material e equipamento técnico.
No interior do país, as condições são geralmente piores. As escolas não passam, muitas vezes, de 'barracos mal cobertos' e não existem carteiras para todos os alunos. Para poderem assistir às aulas sentados, trazem de casa um banco ou improvisam, no local, uma qualquer forma de apoio. Para escrever o truque é o mesmo: uma pequena tábua sobre as pernas, ou, no caso dos mais habilidosos, uma carteira 'self-made'.
O mais grave, esclarece Luís Nancassa, é que 'os professores colocados nestas zonas do país demoram mais tempo a ser pagos e sentem-se completamente desapoiados pelas autoridades', fazendo com que a maioria regresse ou se recuse, simplesmente, a aceitar o lugar.
Estas, algumas das razões que fazem com que a elevada taxa de analfabetismo - apesar do decréscimo substancial registado nas últimas duas décadas - ronde ainda os 60 por cento da população e a taxa de escolarização não ultrapasse os 45 por cento.

Falta de vontade política

Ao contrário do que se possa pensar, esta situação não deriva exclusivamente da falta de meios financeiros. 'Penso que muito se deve à falta de vontade dos governantes, e, mais concretamente, à má política de gestão do ministério da educação guineense', explica Nancassa. Uma falta de compromisso e planeamento caracterizada, nomeadamente, pela inexistência de um calendário escolar ou de períodos de avaliação definidos. O ano lectivo que decorre, por exemplo, teve início em Novembro do ano passado e, até à data, nenhum professor avaliou os seus alunos ou sabe em que dia terminam as aulas. 'É uma situação muito grave, para um país que se afirma moderno e democrático e que se pretende perfilar em pé de igualdade com outros países do mundo'.

Avançando com uma opinião mais pessoal, Luís Nancassa acusa os políticos de 'fomentar elites governamentais' e de 'perpetuarem o poder' através do desinvestimento na educação. A confiança no sistema é tal, diz, 'O ensino na Guiné-Bissau* Pintado a Negro e Cinza'

 

À semelhança da maioria dos países africanos, o ensino público na Guiné-Bissau é marcado por carências a vários níveis. O parque escolar encontra-se muito degradado, grande parte das escolas não tem água e escasseia material de trabalho tão elementar como quadros escolares ou giz. Os professores estão longe de ver o seu trabalho reconhecido e recompensado. Alguns, já não recebem mesmo o salário há quase um ano. Um retrato a nú do terceiro maior país africano de língua oficial portuguesa, que muitos receiam venha a tornar-se francófono.
Presidente da mais representativa estrutura sindical docente da Guiné- Bissau, o Sindicato Nacional de Professores da Guiné-Bissau (SINAPROF), Luís Nancassa é uma das pessoas que melhor estará habilitada a falar dos problemas no ensino e das dificuldades com que diariamente (sobre)vivem professores e alunos. Para caracterizar a actual situação, usa uma única expressão: 'de mal a pior'.
A classe docente, se comparada com outras actividades profissionais de desempenho social, é uma das mais penalizadas na sociedade guineense. O vencimento médio de um professor é inferior a seis mil escudos. Alguns deles já não recebem qualquer vencimenero significativo de outros, formados há mais de três anos, ganham muito abaixo do seu índice de colocação. É caso para dizer que 'trabalhando para o futuro, recebem um salário do passado', ironiza Nancassa. 'É uma profissão para a qual se exige um esforço acrescido e uma grande dedicação, porque de contrário não se consegue trabalhar'.
Com o pouco que ganham, grande parte vê-se obrigado a exercer um duplo emprego, habitualmente ao serviço de escolas privadas, sendo esta, para muitos deles, a única garantia de um sustento digno. Não admira, assim, que existam professores recém-diplomados a trabalhar em Cabo Verde, Angola, Moçambique ou São Tomé e Príncipe, porque, além de não ganharem o suficiente, os professores também 'não são respeitados nos seus direitos', afirma.

Para defender os interesses da classe e reivindicar melhorias no sistema educativo, a SINAPROF (considerado como o primeiro sindicato livre e independente), nasce em 1992, pouco antes do período de abertura política. Até esse ano, a única estrutura reconhecida pelo governo era o sindicato oficial do partido, encarregado de nomear a direcção. Tal organização, no entanto, 'não foi criada pela vontade dos professores, mas fundado pelo governo para justificar a existência da União dos Trabalhadores da Guiné-Bissau, fundada em 1961 durante a guerra da independência'.
Para um país com cerca de um milhão de habitantes, existem cerca de 4500 professores. O número de sindicalizados no SINAPROF ascende a mais de 4100, representando uma margem superior a 90 por cento, traduzindo de forma inequívoca a sua implantação na classe. Os restantes professores, porém, simpatizam com a organização e 'quando são chamados a intervir e a lutar pelos seus direitos aderem à nossa causa'.

Aprender sem livros ou carteiras

As dificuldades enfrentadas pelos professores estendem-se, inevitavelmente, aos alunos. As crianças e os jovens do ensino básico estudam em condições muito precárias, sendo habitual 4 ou 5 alunos partilharem a mesma carteira e não haver giz fornecido pela escola. O número mínimo de alunos por professor, em qualquer estabelecimento de ensino, é de 35, podendo atingir um máximo de 50 em situações extremas. Da mesma forma, são raros os livros e os manuais didáticos postos à disposição, levando a que os professores, por iniciativa deles, se encarreguem da produção de apontamentos ou pequenos fascículos que distribuem pelos alunos.
Embora ligeiramente mais apetrechadas, as escolas do ensino secundário também não estão preparadas para 'acompanhar as exigências do século XXI', como refere o sindicalista. Neste sector de ensino, mais do que instalações satisfatórias, falta sobretudo material e equipamento técnico.
No interior do país, as condições são geralmente piores. As escolas não passam, muitas vezes, de 'barracos mal cobertos' e não existem carteiras para todos os alunos. Para poderem assistir às aulas sentados, trazem de casa um banco ou improvisam, no local, uma qualquer forma de apoio. Para escrever o truque é o mesmo: uma pequena tábua sobre as pernas, ou, no caso dos mais habilidosos, uma carteira 'self-made'.
O mais grave, esclarece Luís Nancassa, é que 'os professores colocados nestas zonas do país demoram mais tempo a ser pagos e sentem-se completamente desapoiados pelas autoridades', fazendo com que a maioria regresse ou se recuse, simplesmente, a aceitar o lugar.
Estas, algumas das razões que fazem com que a elevada taxa de analfabetismo - apesar do decréscimo substancial registado nas últimas duas décadas - ronde ainda os 60 por cento da população e a taxa de escolarização não ultrapasse os 45 por cento.

Falta de vontade política

Ao contrário do que se possa pensar, esta situação não deriva exclusivamente da falta de meios financeiros. 'Penso que muito se deve à falta de vontade dos governantes, e, mais concretamente, à má política de gestão do ministério da educação guineense', explica Nancassa. Uma falta de compromisso e planeamento caracterizada, nomeadamente, pela inexistência de um calendário escolar ou de períodos de avaliação definidos. O ano lectivo que decorre, por exemplo, teve início em Novembro do ano passado e, até à data, nenhum professor avaliou os seus alunos ou sabe em que dia terminam as aulas. 'É uma situação muito grave, para um país que se afirma moderno e democrático e que se pretende perfilar em pé de igualdade com outros países do mundo'.

Avançando com uma opinião mais pessoal, Luís Nancassa acusa os políticos de 'fomentar elites governamentais' e de 'perpetuarem o poder' através do desinvestimento na educação. A confiança no sistema é tal, diz, 'que os filhos desses políticos, bem como de outros elementos influentes da sociedade guineense, estudam na europa, américa ou em colégios e escolas particulares, e não nas escolas públicas guineenses'.
A formação de professores é outra das facetas negras do sistema educativo guineense. Com uma duração de três anos para todos os níveis de ensino, a formação é ministrada em dois níveis: ensino básico e ensino secundário. O governo, porém, 'não pode estar realmente interessado em formar condignamente os professores, porque de contrário não disponibilizaria professores contratados mas sim efectivos'.
Muitos dos formadores, segundo Nancassa, são elementos afectos a ministérios que não o da educação, chamados a prestar serviço numa espécie de regime em 'part-time'. Quando são transferidos ou requeridos pelo executivo a que estão vinculados, deixam de poder dar aulas, com prejuízo evidente para uma formação que se quer continuada. 'É urgente formar um quadro de professores exclusivamente vocacionados para a formação inicial e proporcionar melhores condições aos formandos'.

Membro permanente da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, a Guiné-Bissau não deixa, apesar desse estatuto, de receber apoio e formação do governo francês. Uma estratégia declaradamente expansionista, se for permitido o termo, já que todos os países vizinhos partilham a expressão francófona.
Neste domínio, Luís Nancassa considera que Portugal devia ter mais atenção com a preservação da língua nos países de expressão portuguesa e garantir que estes continuem a servir de embaixadores nas zonas onde se inserem. Para isso, 'devia apoiar de maneira mais incisiva a formação de professores de português'. O governo francês está a ganhar esta batalha, explica, porque aposta na incrementação da língua através de um política coordenada, baseada em estágios de formação nos países vizinhos e em França e na realização de seminários pedagógicos semanais, através do centro cultural francês. O apoio concedido pelo centro cultural português resume-se a iniciativas esporádicas e a duas salas onde se comprimem vinte e mais alunos. 'Claramente insuficiente para um governo que tem a responsabilidade de defender um património cultural comum', lamenta.

Ricardo Jorge Costa

*Trabalho elaborado antes do começo da guerra civil que assola o paísque os filhos desses políticos, bem como de outros elementos influentes da sociedade guineense, estudam na europa, américa ou em colégios e escolas particulares, e não nas escolas públicas guineensesí.
A formação de professores é outra das facetas negras do sistema educativo guineense. Com uma duração de três anos para todos os níveis de ensino, a formação é ministrada em dois níveis: ensino básico e ensino secundário. O governo, porém, 'não pode estar realmente interessado em formar condignamente os professores, porque de contrário não disponibilizaria professores contratados mas sim efectivos'.
Muitos dos formadores, segundo Nancassa, são elementos afectos a ministérios que não o da educação, chamados a prestar serviço numa espécie de regime em 'part-time'. Quando são transferidos ou requeridos pelo executivo a que estão vinculados, deixam de poder dar aulas, com prejuízo evidente para uma formação que se quer continuada. 'É urgente formar um quadro de professores exclusivamente vocacionados para a formação inicial e proporcionar melhores condições aos formandos'.

Membro permanente da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, a Guiné-Bissau não deixa, apesar desse estatuto, de receber apoio e formação do governo francês. Uma estratégia declaradamente expansionista, se for permitido o termo, já que todos os países vizinhos partilham a expressão francófona.
Neste domínio, Luís Nancassa considera que Portugal devia ter mais atenção com a preservação da língua nos países de expressão portuguesa e garantir que estes continuem a servir de embaixadores nas zonas onde se inserem. Para isso, 'devia apoiar de maneira mais incisiva a formação de professores de português'. O governo francês está a ganhar esta batalha, explica, porque aposta na incrementação da língua através de um política coordenada, baseada em estágios de formação nos países vizinhos e em França e na realização de seminários pedagógicos semanais, através do centro cultural francês. O apoio concedido pelo centro cultural português resume-se a iniciativas esporádicas e a duas salas onde se comprimem vinte e mais alunos. 'Claramente insuficiente para um governo que tem a responsabilidade de defender um património cultural comum', lamenta.

Ricardo Jorge Costa

*Trabalho elaborado antes do começo da guerra civil que assola o país


  
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Edição:

N.º 70
Ano 7, Julho 1998

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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