Na releitura de Reduto Quase Final o que mais surpreende no autor de O Que Diz Molero, depois do seu discurso endereçado a García Marquez, é a intenção primordial de a 'escrita' ser quase personagem imediata da ambiência de todo o livro, cujos textos em rigor se não podem enquadrar literariamente como novelas ou contos, nem como narrativa autobiográfica no seu conjunto e Dinis Machado nos confessar que este livro 'começa por ser, de alguma maneira, a tentativa de fixar um certo número de memórias particularmente expressivas em mim'. Mas se a escrita ganha essa autonomia que já se declarava nas páginas de Molero, não é menos exacto dizer-se que, por entre a profusão de referências literárias e outras, mesmo no desvendar da força e envolvência das palavras, nos signos e símbolos de que sempre se rodeiam ou por eles se impõem (as palavras têm as suas 'casas' na memória e intenção do narrador quando delas se serve e a elas sempre apela para povoar o vazio do seu 'reduto' ou 'trincheira'), é o tempo e a recordação dos lugares que se ergue como 'matéria' ficcional ou biográfica de querer recuperar outra imagem de um passado vivido, das pessoas que andaram pelos mesmos cafés, nos sonhos de filmes ou livros para preencher o vazio das horas, talvez nesse sentido paradigmático (como se evoca acerca de A Queda de Camus, e é certamente dos melhores textos deste livro) do gosto de falar e de escrever para se ouvir ou 'ter de se reconhecer naquilo mesmo que escreve. E assim se explica: 'Tenho que me reconhecer no que escrevo. Não vale a pena se não for assim. Nem se trata, ao de leve, de contrariar outros processos, ou teorias. Ou outras formas de relação com as palavras, a linguagem, o texto' (pág.87). Poucas vezes, entre nós, o ficcionista costumava colocar a si mesmo, como é hoje norma muito seguida, esse problema de a 'escrita' se impor como razão estética do próprio acto de criar, como na linguagem pictórica é importante a cor ou o sentido de composição de que o pintor se serve nas diferentes gradações da sua arte. Mas é quase imperativo que, nas entrelinhas ou nas linhas cruzadas do que se escreve, se possa encontrar a justificação do 'modo de escrever', em jeito de explicação necessária para se não trocarem as voltas ao texto, se dizerem coisas que de perto se não relacionem com as intenções do autor. E, nesse exercício de escrita, como expressivamente se evidencia em Reduto Quase Final, o que sobra para a compreensão do leitor é ainda a atitude de se dizer que as palavras se encontram nas 'casas' certas, se utilizaram estas e não outras, enfim, se está disposto a 'ser melhor todos os dias', que as intenções foram estas e não outras, que o autor nunca teve nem poderia ter. Tudo certo, e assim muito bem explicado. Mas o que melhor se entende, na urgência da escrita de um livro como este de Dinis Machado que relemos a uma distância de dez anos, é sobretudo a intenção primeira da sua propositada incursão pelos meandros do tempo e da memória, mesmo que nos confesse não ter sido esse o pretexto. O livro impôs-se 'por dentro', rápido e urgente, sem tempo para ficar na gaveta a amadurecer, na imperiosa razão pessoal de lhe não dar outra oportunidade: chegar ao fim da escrita e fazê-lo entrar na máquina, enxuto de outras versões ou tentativas literárias, colocá-lo nas mãos do leitor, e ainda lhe poder dizer que 'escrever tinha, para mim, nas ocasiões mais urgentes, um carácter ritualista'. Mas, pelos fios da memória e do sentido narrativo de Reduto Quase Final, na lembrança de outras referências a autores do seu agrado (Camus, Chandler, Boris Vian, Horace McCoy, Caldwell e outros), o que mais cativa como registo de leitura é o propósito de Dinis Machado falar, nos pretextos que reinventa ou rememora, do que para si é realmente significativo e neste livro se revela como 'corpo' essencial de um contar para si mesmo e se recuperar nas mágoas ou lembranças que ficam tantas vezes pelas entrelinhas do seu processo narrativo. É uma linguagem directa e objectiva, sem rodeios, fala do gesto e acto de escrever como quem gosta de andar a pé ou fumar uma cigarrilha, no meio dos outros, solidário com toda a gente. E esse sentido marcadamente autobiográfico é o que mais importa relevar na leitura deste livro, porque Dinis Machado nada esconde ou cala, recupera a'escrita' como forma de assunção literária e assim ganha forças para outros combates com as palavras que andam por dentro da sua própria casa. E poderá seguir por essas veredas e memórias das pessoas que saltam no correr dos anos (pela 'Brasileira' ou ruas do mítico Bairro Alto e largo de Camões sem mudanças visíveis), denotam mesmo os seus códigos pessoais, estabelecem a linguagem imediata e liberta de quaisquer artifícios, consentem que o narrador alimente a esperança de concluir os romances que ficaram (ou estão ainda) na gaveta. Assim, pelo sentido da escrita e sem receio de a dúvida se instalar no espírito e impedir o rumo natural e esperado da qualidade de uma prosa ficcionista que prossegue desde O Que Diz Molero, Dinis Machado confirma com este livro a sua capacidade criadora e o modo de estar por direito na vanguarda da nossa moderna ficção. Serafim Ferreira
DINIS MACHADO REDUTO QUASE FINAL Bertrand Editora / Lisboa.
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