Começo por dizer que sempre entendi o acto de escrever como forma de redenção pessoal e até hoje não soube fazer outra coisa que não fosse reinventar pelo mundo das palavras, quase em forma de lavoura arcaica, esse mundo ficcional em que me sinto mais à vontade. Não se trata apenas de um simples ofício de viver, mas antes do propósito de me entender o melhor que posso e sei com as palavras, emoções, ideias e sentimentos, já que todos os dias me oriento como pescador ou marinheiro de águas calmas e, mesmo quando exerci outros ofícios, nunca me pude dar ao luxo de perder esse rumo em que a cada passo procuro subverter ou inverter o sentido corrente de todas as coisas, pessoas e lugares que povoam as páginas das minhas narrativas como forma comovida de ter sempre a nostalgia do passado que é essa mesma, creio eu, de que falam os poetas quando dizem ter 'saudades do futuro'. Ora, falar aqui, na terra em que nasceu um dos maiores humanistas do nosso século dezasseis, desta minha narrativa intitulada Crónica de Damião, adianto desde já que se integra na linha de outros livros como Cartas de Marear, Livro de Horas ou Elogio do Cavaleiro e se revela como uma tentativa ficcionista de emprestar a mão e a memória para traçar, em jeito de crónica e através de várias linhas, os caminhos por onde andou Damião de Góis e de cuja dolorosa e estranha morte se começa por falar ou evocar. Ao longo de todo o livro em forma de crónica, falando pela interposta pessoa do Narrador, na sobreposição dos planos narrativos e nas inevitáveis referências culturais, julgo que melhor se desvendam alguns dos aspectos singulares da vida e obra deste grande homem do Renascimento português, enaltecendo e repisando os passos da sua tormentosa via-sacra e saber como partiu desta vida pelo cerimonial do fogo em anos que ainda são de triste memória. Por isso, na lembrança de o livro ter sido galardoado em 1996 com o 'Prémio Literário Miguel Torga/ Cidade de Coimbra', posso ainda evocar o celebrado autor de Contos da Montanha, que nos soube legar uma das mais expressivas obras do nosso tempo, e repetir com ele que também para mim 'escrever é um acto de esperança, e de inocência também, e todos os que escrevem em agonia, lúcidos e cépticos, condenam-se de antemão'. Porque esse foi de certo modo o destino amargo e trágico que Damião de Góis conheceu quase em finais do século dezasseis como relembro nas páginas do meu livro, de que terei muito gosto em falar em jeito de conversa, que espero seja interessante e dentro da natural expectativa deste nosso encontro aqui, na Biblioteca Municipal de Alenquer, à sombra e na sempre merecida evocação de Damião de Góis.
Alenquer,22.Novembro. 1997. Serafim Ferreira
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