Página  >  Edições  >  Edição N.º 187, série II  >  Os professores são construtores de conhecimento

Os professores são construtores de conhecimento

Professora da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa (UL) desde 1988, Manuela Esteves é membro da Assembleia de Escola e do Conselho Científico do Instituto de Educação da UL, em fase de instalação. Integra, desde 1983, o Conselho Nacional da Fenprof e faz parte da Direcção do Sindicato dos Professores da Grande Lisboa (Departamento de Ensino Superior). Tendo em conta a sua longa experiência na área de formação de professores e o seu passado e presente como sindicalista, a PÁGINA foi ouvir Manuela Esteves em torno da memória social e profissional dos professores –, levantando ainda outras questões sobre a prática profissional e os desafios que actualmente se lhe colocam.

Na sua opinião, os professores valorizam a memória social e profissional da classe?

É uma pergunta de resposta difícil, porque depende em grande medida do contexto temporal em que cada um se situa. Imagino que os professores mais jovens, que iniciaram o seu percurso profissional nos últimos cinco ou dez anos, não tenham presente o mesmo tipo de memória relativamente a quem está há mais tempo na profissão. E a questão que se coloca, nesse caso, é saber se quem está nessa situação, e as organizações e associações que constituíram, são ou não capazes de fazer a passagem dessa herança.

Independentemente dessa análise, acha que essa memória é valorizada?

Eu diria que sim. Em condições que, por vezes, poderão parecer um tanto ou quanto ingénuas. É habitual, em conversa com outros professores, ouvir estabelecer comparações entre o passado e o presente de uma forma muito emocional, ou pelo menos pouco racionalizada, assumindo que o grupo profissional tem determinados méritos ou determinadas responsabilidades face ao estado em que a profissão se encontra.
E podendo fazê-lo de muitas maneiras, diria que o mais frequente seja em um de dois sentidos: ou mitificando o passado, do qual têm saudades (“antes é que era bom” é um comentário comum), e assumindo que o presente é sempre pior; ou num sentido alternativo, em que o que prevalece é a mudança com um registo do que de positivo também acontece, não olhando para o passado de forma mitificada. Mas, seja qual for a opinião, esta questão da memória é sempre algo de muito problemático, porque ela não é inerte e estamos permanentemente a reconstruir um passado.

Com qual dessas posições se identifica?

Antes de mais, acho conveniente situar o tempo da minha memória. Eu comecei a trabalhar ainda antes do 25 de Abril. Do ponto de vista da experiência pessoal, posso dizer que tive a sorte de trabalhar pouco tempo durante a ditadura. Mas isso ainda me permitiu vivenciar com o realismo necessário o que era ser funcionário público na área do ensino, com os constrangimentos políticos, sociais e profissionais próprios da altura.
Nessa medida, eu tendo definitivamente a valorizar o progresso que se viveu de então para cá, demonstrável através de factos – o que outros professores não podem fazer, porque são mais jovens – que transferem o meu ponto de vista pessoal para um mais objectivo. Isto é, quando afirmo que houve imensos progressos na condição dos professores, na situação da profissão docente e nas mudanças operadas ao nível do sistema educativo, eu posso demonstrá-lo com factos e não com sentimentos.

Voltando ao início da conversa, e pedindo-lhe que assuma o seu passado e presente como sindicalista, qual pode ser o papel dos sindicatos na salvaguarda desse património?

Eu penso que os sindicatos terão, provavelmente, um papel insubstituível neste domínio. A par com um outro, que eu espero que também seja assumido e que é o da investigação. A profissão docente é uma categoria profissional que tem beneficiado, com alguma regularidade, de trabalhos de investigação através dos quais se procura analisar a sua evolução ao longo do tempo. Neste domínio, e podendo referir alguns trabalhos já realizados, gostaria de citar em particular o trabalho de doutoramento do professor António Nóvoa, «O Tempo dos Professores».
A minha expectativa, portanto, é que a investigação continue a interessar-se pelo estudo desta profissão. Mas, a par desta, e com efeitos sociais provavelmente mais importantes, deverão estar também os sindicatos, nomeadamente os centros de estudos que eles dinamizam, as publicações – como «a Página da Educação» – que sustentam, que permitam de uma maneira mais viva, menos balizada em estudos, que os grupos de professores, em particular aqueles que vão chegando à profissão, tenham um melhor conhecimento da história da profissão. Porque perceber o presente à luz do passado ajuda-nos, sem dúvida, a perspectivar o futuro.

E considera que os sindicatos têm conseguido afirmar publicamente a profissão? Ou essa vertente pode ser reforçada?

Esse é um trabalho que deverá ser feito em permanência e do qual nunca se poderá dizer que atingiu o patamar da excelência. Não me recordo, desde que existem os sindicatos, de nenhum momento em que as suas organizações reconheçam ter atingido esse nível, de não haver mais nada a fazer. Aquilo que é normal em todas as organizações que estão vivas, é haver a noção de que se pode fazer mais e melhor e de que ainda existe muito caminho para andar.
Para lá desta insatisfação, que me parece saudável, creio que os sindicatos são organizações essenciais na afirmação da profissão. E nestes últimos três anos de muita conturbação eles assumiram precisamente esse papel. Poderá ter havido outros movimentos que contribuíram para esse objectivo, e eu respeito a sua iniciativa, mas o papel dos sindicatos foi insubstituível.
Se não tivéssemos sindicatos e nos limitássemos a ficar por conta de movimentos mais ou menos esporádicos, que conjunturalmente se organizam em torno deste ou daquele interesse particular, os professores não teriam, com quase toda a certeza, mantido a firmeza e o sentido colectivo no sentido de constituírem um corpo profissional que precisa de se afirmar permanentemente na sociedade. Até porque nenhum grupo social tem o seu estatuto garantido. E os professores têm de mostrar que são úteis à sociedade e que esta pode confiar neles, e que por esse motivo têm direito a lutar pelos seus direitos. E os professores mostraram tudo isto de uma forma significativa, nunca antes vista na história dos movimentos sindicais.
Outro aspecto essencial desta afirmação, que me parece ser importante referir, é que não deverá ser meramente corporativa, mas focar-se simultaneamente, como o tem feito, no trabalho desenvolvido no plano da educação. Daí a importância que os sindicatos sempre deram e continuam a dar à política educativa, num sentido mais geral do que a política em relação ao grupo profissional: a política em relação às escolas, aos currículos, aos recursos humanos, materiais e financeiros, que a todo tempo vão também configurando o trabalho que nós fazemos. E julgo que, ao contrário do que muitas vezes se diz e do que muitos professores possam pensar, a sociedade portuguesa reconhece este trabalho.

Tendo em conta a sua experiência na formação de professores, de que forma encaram os jovens esta questão da memória social e profissional?

Eu penso que essa percepção não depende tanto dos jovens que estão a formar-se para ser professores, mas, acima de tudo, dos formadores e das instituições de formação. Provavelmente não lhes ocorrerá perguntar como era ser professor há 50 anos... A questão é saber se, na formação de um professor, há algum interesse em que ele saiba como a profissão evoluiu. E daí a responsabilidade das instituições formadoras e dos profissionais que nelas trabalham, no sentido de eles compreenderem a importância desta memória e desta passagem de testemunho.

Que importância adquire essa contextualização na sua acção futura?

Julgo que quando se pode mostrar que uma profissão evoluiu no sentido de uma maior especialização e profissionalização, como é o caso da profissão docente, e se os alunos tiverem algumas referências claras sobre o que isso significa, eles estarão provavelmente mais abertos e mais capazes de investir no prosseguimento dessa especialização.
Mostrar que as coisas aconteceram de determinada forma, que esta é uma linha evolutiva que parte de uma situação em que ser professor era apenas dominar a matéria que se tinha de ensinar – como foi característico durante décadas – para uma outra em que o professor é um especialista dos processos de aprendizagem e alguém que, no seu campo de trabalho, é um construtor de conhecimento. Ao mesmo tempo, mostrar como a profissão evoluiu em termos de segurança de emprego e de qualidade na remuneração, ajudará a sustentar intervenções mais esclarecidas e empenhadas.

Até que ponto a formação inicial de professores contempla essa vertente?

Depende muito de cada instituição de ensino. Será preciso dizer, talvez, que a formação inicial de professores está consagrada numa legislação que estabelece áreas de formação e o peso que essas áreas assumem no respectivo mestrado. Partindo da definição dessas grandes áreas de formação, competirá a cada instituição formadora traduzir cada uma delas em disciplinas, objectivos e conteúdos de aprendizagem.
Haverá algumas escolas que, por exemplo, oferecem a disciplina de História da Educação. Mas conviria perceber de que forma organizam e orientam essa disciplina. É para o passado longínquo? É para estudar o que foi a profissão docente em Portugal no século XIX? É para estudar o passado mais próximo, a forma como evoluiu a Escola e a profissão no século XX? Aí teríamos de interrogar cada instituição para saber qual é o sentido que cada uma atribui a essa formação.
Na minha perspectiva, porém, não basta que exista a disciplina para garantir esta formação. Ela depende, em grande medida, da qualidade dos programas que são organizados. Isto em termos de uma formação mais formal, tal como ela aparece nos currículos.

Existe outro tipo de formação que possa complementar a que acabou de referir?

Sim, nomeadamente a que se faz em relação com os professores mais experientes. A formação de professores inclui sempre um tempo de iniciação à prática profissional, realizada em escolas concretas, junto de profissionais experientes. E aí, eventualmente, essa relação permitirá alguma passagem de conhecimento sobre a vida profissional.
Ao mesmo tempo, e de uma forma espontânea, não estruturada, haverá orientadores de prática pedagógica que sentem ser sua função socializar o professor na profissão, explicitando de que forma ela evoluiu num passado recente. Haverá, no entanto, quem não o faça, porque não está ainda muito claro, no plano da formação de professores, que esta seja uma questão relevante. É um pouco aleatório, inclusivamente ao nível dos programas.
Daí que me pareça muito importante o trabalho que as associações sindicais possam fazer neste plano. Porque, na minha opinião, os sindicatos também devem assumir-se como entidades formadoras, no sentido de reconhecimento de pertença a um grupo profissional. Nomeadamente conhecendo a história recente desse grupo, de que forma ele evoluiu, o que tem sido a acção sindical, quais foram as prioridades ao longo do tempo...
É também nesse sentido que os sindicatos devem começar a cuidar organizadamente da sua memória, dos seus arquivos. Porque há documentação que, pela sua natureza específica, não estará guardada nos arquivos nacionais – cadernos, comunicações, boletins internos, entre outros, que constituem fontes extremamente importantes.

Passando a questões mais específicas: defende o recurso à investigação como estratégia fundamental na formação de professores. Até que ponto ela está presente na estrutura dos actuais cursos da formação de professores?

Por definição, está em todos. Um dos aspectos positivos da legislação de 2007 relativa às habilitações para a docência foi o facto de ter consagrado a iniciação às metodologias de investigação como uma das componentes da formação inicial dos professores, o que é algo inédito. Na Lei de Bases do Sistema Educativo, aliás, refere-se que um dos princípios a que a formação de professores deve obedecer são as competências no domínio da investigação e da inovação. Mas quando se chegava ao plano dos currículos de formação inicial, isso não aparecia claramente consagrado. Deste ponto de vista, todas as instituições de Ensino Superior, públicas e privadas, contemplam esta componente. Este é o aspecto formal.
O problema que se coloca é de que forma, em concreto, ela é interpretada nos currículos. E aí há duas hipóteses: criar uma disciplina intitulada Iniciação às Metodologias da Investigação, com um carácter essencialmente transmissivo, livresco, através da qual os alunos aprendem a delinear e a descrever as diversas metodologias de investigação – o que, do meu ponto de vista, não tem interesse, porque é um saber meramente teórico, que não fará grande diferença; ou esta disciplina aposta na realização de trabalhos de investigação por parte dos estudantes. E isto, sim, faz toda a diferença, porque é fundamental a qualquer professor saber utilizar a investigação para resolver os problemas da sua prática quotidiana.
Quando falo na investigação como estratégia na formação de professores, encaro-a como uma relação entre as competências investigativas e a capacidade, em primeiro lugar, de reconhecer a existência de problemas nas escolas – parece algo trivial, mas não é, porque muitos professores não identificam os problemas que estão à sua volta; em segundo lugar, ter vontade de os resolver; e, finalmente, ter a capacidade de os resolver, que não pela tradicional via da tentativa e erro.
E, hoje, as situações de trabalho dos professores são suficientemente complexas para beneficiarem da capacidade de um procedimento investigativo: identificar o problema, recolher dados que sejam apropriados para compreendê-lo e, a seguir, tomar decisões para a acção. E é aqui que o trabalho do professor diverge do do investigador, porque a este não se pede que actue, que resolva os problemas.

Mas aos professores tem sido deixado pouco tempo para actuar dessa forma...

Sim, e o trabalho dos professores deveria contemplar a realização de trabalhos de natureza investigativa, colaborativa – porque estes trabalhos ganham sentido quando são feitos por grupos de professores, e não individualmente, sendo muito difícil nestes casos manter o estímulo e o incentivo para continuar. Nas escolas deveriam existir grupos de trabalho, comunidades de professores interessados em resolver o mesmo tipo de problemas: a indisciplina, a dificuldade de aprendizagem, entre outros...
Naturalmente que o tempo teria de ser retirado a outro tipo de tarefas, de natureza administrativa, com as quais os professores se encontram actualmente sobrecarregados. Nesse sentido, as nossas escolas necessitariam também de contar com técnicos especializados, que, não sendo professores, poderiam assumir o papel de auxiliares preciosos em determinados tipos de trabalho que actualmente estão entregues aos professores.
Mas, para isso, seria preciso repensar a sua organização e enriquecer o conjunto de meios humanos que se encontram à sua disposição. Só dessa forma será possível aos professores envolverem-se em projectos de investigação e de inovação.

Insistindo na questão da investigação-acção: sobre que questões deveria incidir, principalmente, a reflexão dos professores?

Acima de tudo, sobre a aprendizagem dos alunos, no seu sentido mais amplo: a aprendizagem mais formal, ligada às matérias e às competências escolares, mas também a aprendizagem em termos de cidadania e de educação global, que hoje em dia se pede às escolas, e do meu ponto de vista muito bem. Este deveria ser o enfoque dominante, se não mesmo o único. Não vejo interesse em que a reflexão se faça fora deste quadro: uma interpelação sobre o que cada escola e cada professor está a conseguir que os seus alunos aprendam, questionar sobre se isso representa o máximo da sua ambição ou se a ambição é maior. E se for maior, quais os caminhos para lá chegar.

Que critérios utilizar para distinguir o que são boas práticas educativas das que podem considerar-se menos boas?

Eu penso que as boas práticas educativas são as que levam os alunos a aprender, desde que salvaguardados determinados princípios de ordem ética que limitam a acção do professor. Ensinar é fazer o outro aprender. As boas práticas serão, portanto, as que se coadunam com os alunos concretos que o professor tem na sala de aula e que os levam a aprender, a melhorar. O caminho para lá chegar é que não será igual para todos os alunos. Uns irão mais longe, outros menos, mas o importante é que todos progridam alguma coisa através do esforço que fazem.
E, ao contrário de certas pessoas, considero que há situações e momentos em que é fundamental que o professor exponha a matéria. Nunca alinhei naquelas correntes que quase defendem o desaparecimento do professor para pôr o aluno a aprender por si próprio.

Para terminar, até que ponto as deliberações dos professores devem incorporar a crítica dos contextos institucionais em que o seu trabalho se processa?

Eu creio que aquilo que se passa numa escola nunca pode ser compreendido apenas à luz dessa mesma escola. Admito que as escolas e os professores tenham um certa margem de autonomia no desempenho do seu trabalho, mas ter uma certa margem de autonomia não significa ter todas as condições para organizar a escola da forma desejável. Ao mesmo tempo que se empenham na melhoria da qualidade do seu trabalho e do trabalho da sua escola, é fundamental que os professores não percam de vista que um e outro fazem parte de um universo maior, em relação ao qual é necessário estar atento e participar.
Quando falo em ter uma posição crítica relativamente aos contextos, isso significa procurar abranger tanto o contexto próximo, que é a escola em que se trabalha, como o contexto nacional. E mesmo internacional. Nós não podemos olhar para a política educativa portuguesa e não estabelecer comparações com a política educativa de outros países. É forçoso fazê-lo. Porque, provavelmente, aí encontraremos maneiras de perceber as nossas limitações e procurar ultrapassá-las.
Não acho defensável a ideia de que cada escola é uma ilha e de que todos os problemas e dificuldades que ela enfrenta são resolúveis no local. Porque a maior parte deles não são. Por outro lado, convirá também perceber com nitidez aquilo que é responsabilidade da escola e aquilo que é responsabilidade do contexto e da política nacional, porque, por vezes, existe a tendência de responsabilizar o contexto nacional por todos os problemas que existem nas escolas. E aí, a Escola desresponsabiliza-se, desinteressa-se de intervir, porque o problema vem sempre de longe. Convém, por isso, que as escolas e os professores saibam reconhecer o que é ou não da sua responsabilidade, e que aceitem a discussão.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo

 
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

Edição N.º 187, série II
Inverno 2009

Autoria:

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo