Para celebrar os 45 anos da sua actividade literária, Júlio Conrado acaba de publicar De Tempos a Tempos, edição organizada por Anabela Rita, integrada por diversos ensaios e uma antologia pessoal, cronologia, bibliografia activa e passiva. Trata-se de uma edição que pretende ser o balanço de muitos anos de criação literária, crítica e poética do autor de Gente do Metro que até hoje tem sido regular e actuante e só não tem merecido por inteiro o interesse de mais leitores por ser Júlio Conrado um autor à margem dos circuitos em que se forjam as cotações. Mas isso pouco importa e aqui está este livro para testemunhar a sua fidelidade e coerência. E a propósito, dizemos que uma obra literária faz-se fazendo no correr dos anos, sem pressa nem atropelos, tudo ao sabor da corrente ou ser uma forma de entender a escrita como forma de redenção. Ora, no caso pessoal de Júlio Conrado, cuja estreia se deu em 1963 com o livro de contos A Prova Real e abriu caminho a uma afirmação ou vocação que se espalhou pelo conto, romance, ensaio e crítica literária e se espalha em muitos títulos publicados, sem se notar qualquer cedência a modas, e reforçando o sentido de uma prosa de ficção em coordenadas muito próprias e de clara sensualidade que se definiu desde cedo (e basta pensar nos retratos de mulheres que se revelam nos seus romances), a partir de As Pessoas de Minha Casa, com certeza um dos seus melhores livros e por isso uma vez mais relembro que, na fragmentação narrativa em que este romance se alicerça, Júlio Conrado espalhou todos os pedaços, imagens, recordações de uma vivência pessoal e recompô-los num quadro objectivo e explícito no final da história: na verdade, as últimas páginas, no refúgio da casa do Guincho, explicam o percurso cruzado e entrecruzado do narrador. Mas pelos diferentes registos e lembranças, sonhos e experiências vividas em trajecto alongado de fervor e desencanto, amor e desamor, intervenção e resistência, o que o narrador nos desvenda é, sobretudo, o sentido apaixonado e por vezes desistente de entender o mundo à sua volta e as pessoas que não habitam na sua casa. Mesmo que avise o leitor de a história não ser em rigor uma "autobiografia romanceada", Júlio Conrado não parte de referências alheias para a construção/desconstrução narrativa do livro: as pessoas (Clara, Vânia, Liberta, ou Judite) e os lugares (Lisboa, Algés, Guincho ou Cascais) que pelas páginas se espraiam em jogos escondidos ou de artifício ficcional para "segurar" o leitor e determinar que a intenção da sua factualidade histórica deve muito à "memória do tempo" ? um tempo que decorre entre finais de 50 e a década de 80, ou seja, um tempo de vivência e descoberta, de amor e alegria, de medos, esperanças e frustrações, sempre marcado por anotações referenciais de infância ou adolescência, mas presente no fio narrativo do discurso esse "trajecto" da realidade que bem conheceu, vivida e observada nos confrontos da vida e dos outros, mesmo nos desenfados das pessoas que habitaram na sua casa ou de todas as que andam a seu lado, no quotidiano vivido em permanente atenção, como soube captar nas páginas das ficções de Gente do Metro, quando de algum modo estava longe de atingir a maturidade literária que os últimos romances revelam e, sobretudo, em Estalão Ardente (Novas Cartas de Sndra) que mereceu o Prémio Literário Vergílio Ferreira em 2996 e é sem dúvida uma forma sincera de homenagem ao autor de Para Sempre, com alguns achados literários e una estrutura romanesca de sentido inovador. Mas, nesta breve abordagem, o que mais importa destacar é a atitude de Júlio Conrado ter feito da escrita a sua tábua de salvação e aí está a obra que até hoje pôde consolidar. Por ser um espírito atento e interessado nos valores culturais, e em especial da literatura, à qual deu sempre a melhor atenção nas páginas de jornais e revistas, não deixando de exercer o direito de criticar livros e autores que nos últimos anos tiveram da sua parte uma palavra de compreensão ou de crítica feita dentro dos seus próprios postulados. E aí estão os vários livros em que reuniu muitas das recensões saídas no Diário Popular, O Século, Vida Mundial ou Colóquio-Letras. Não como quem cumpriu uma missão que a si impôs, mas ainda e sempre por ser a escrita uma forma de redenção. E por isso mesmo relembramos estas palavras de Vergílio Ferreira em Conta-Corrente 4 (1986): "A escrita é o reflexo ou tradução daquilo que o escritor é em equilíbrio, sensibilidade, personalidade, gosto, inteligência. O estilo é o homem na medida em que o exprime. E ele exprime-se na medida do que é".
Júlio Conrado DE TEMPOS A TEMPOS Antologia Crítica e Pessoal / Organização de Anabela Rita Roma Editora ? Lisboa, 2008.
Serafim Ferreira
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