Estava-se no 2°. Salão de Leitura de Niterói onde aconteciam painéis paralelos à mostra de livros exibidos pelas editoras. Do lugar privilegiado que me coube como integrante do painel que discutiria Leitura, conhecimento e aprendizagem, corri o olhar pela platéia. Vi estudantes com o uniforme de cursos de formação de professores a nível de 2°. grau, reconheci ex-alunas do curso de Pedagogia da UFF e perfis típicos de professoras. Eis que, de repente, entrou no teatro quase repleto alguém que contrastava com esse público vário, mas identificado com a cultura letrada. Tratava-se de uma mulher idosa, humildemente vestida. Com muito cuidado para não molestar ninguém, dirigiu-se ao lugar vago no extremo da primeira fila e acompanhou as falas do painel atentamente. Podia ler em seu rosto um esforço visível para acompanhar o que era dito: o cenho se contraía, o olhar se inquietava, vez ou outra fazia um assentimento de cabeça. Finalmente, ao término da terceira fala, a palavra foi passada aos presentes para comentários e perguntas. As primeiras intervenções vieram de lugares muito próximos daqueles de onde falaram as três palestrastes. Eis que aquela senhora levantou timidamente a mão e pressenti que sua fala poderia fazer diferença. Transcrevo sua palavra forte: Eu sou uma velha ignorante e entendi muito pouco o que as professoras que sabem muitas coisas falaram. Mas, tenho que dizer o que eu vou dizer. Eu vim aqui, por causa de meu neto. No meu tempo de escola, aprendi umas poucas letras, umas contas e fui tocar a vida. Não tinha cabeça pra estudo. Depois aconteceu igualzinho com tudo que é filho meu. Mas meu neto eu quero ver se salva. Eu sei que a escola não reprova mais. Mas se ele num aprende, como vai ser? 0 que é que "tá" errado: é com meu neto, é com a escola? Quem pode me explicar dum jeito que eu posso entender: o que é preciso fazer pro meu neto aprender a ler e escrever de verdade? Como resgatar a vitalidade daquele ato potente de linguagem? Um ato tão fortemente responsivo quanto responsável, tão ético quanto consciente, tão político quanto pedagógico. Aquela avó tinha o que dizer, sabia o que dizer e a quem dizer. Sua fala provocou um silêncio incómodo, uma tensão quase palpável. Responder era preciso e muitas palavras foram lançadas, anunciando possibilidades. 0 que levei comigo, porém, foi a potência daquele ato responsivo, daquela intervenção responsável em relação ao outro: o que fazer pro meu neto aprender a ler e escrever de verdade? Com a ajuda de Bakhtin leio o discurso bivocal daquela avó, no que parecia afirmar como já dado, inclusive sua "ignorância", mas também no que contrapunha a esse discurso uma avaliação outra que afirmava o direito de ouvir outras palavras: mais claras, mais compreensíveis, mais efectivas. Humilde embora, seu discurso manifestava a ousadia de reclamar a parte que cabe ao neto na partilha dos bens culturais. A inteireza do que moveu a enunciação daquela avó produziu um enunciado polifônico capaz de incomodar, denunciar e até anunciar. Como não pensar com Boaventura que as palavras legitimadas expressaram idéias fortes mas respostas fracas ao desafio de uma escola que mude a vida? Como não perceber que o nosso discurso verborrágico se torna hermético ao não falar uma língua que o povo entenda? Como encurtar a distância entre a vida e a escola e ajudar as crianças a aprenderem? Com a ajuda de Paulo Freire releio aquela fala como acontecimento que resgata o vigor contido na palavra ato. Freire diferencia ato e atividade, pois, diversamente do animal que não é senão a atividade que realiza, o ser humano é capaz de exercer um ato de reflexão não só sobre si mesmo, mas sobre sua atividade. Em diálogo com Freire e Lacan, considero com este que o ato inaugura uma intervenção que permite a um sujeito se reencontrar radicalmente transformado em relação ao que era antes daquele ato. E, sobretudo, atos chamam novos atos: de pensar o fazer, de refletir sobre o realizado e conhecer, de imaginar o ainda não existente e criar a partir do apreendido. 0 que nos ocupa de forma displicente, sem capturar a atenção, sem se tomar significativo, não alcança a dimensão de atos dialógicos em que se implicam emoção e razão. Os efetivos atos da comunicação operam na relação, implicando respostas como aconteceu no momento em que aquela avó defendia o direito de seu neto a aprender a ler de verdade. Sua palavra nos obriga a indagar se, na maior parte do tempo na escola, há efectivamente atos de comunicação, atos dialógicos, ou se prevalecem comunicados transformados em conteúdos estáticos, como denunciou Freire. Se um sujeito deposita conteúdos petrificados nos outros, estes são impedidos de pensar de forma correta. Ou seja, os que são considerados passivos, de algum modo, não se autorizam a refletir. Tampouco a alfabetização pode se dar como resultado da simples transmissão de um código, descolado da cultura letrada. Falta as atividades das cartilhas a inteireza de atos significativos plenos do sentido de ler e escrever, não como atividades que definem quem subordina e coloniza o outro, mas como passagens que este outro descobre para um mundo sem fronteiras no qual possa se afirmar.
Edwiges Zaccur
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