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Empregabilidade, essa (pre)disposição contemporânea

A propósito de relatório recentemente divulgado pelo MCTES sobre a procura de emprego pelos diplomados do ensino superior, sobre o qual nos pronunciaremos mais abaixo, valeria a pena precisar alguns conceitos, nomeadamente o conceito de empregabilidade.
Nas palavras de Dubar (2000: 112), a empregabilidade traduz o "manter-se em estado de competência, de competitividade no mercado (do mesmo modo que nos mantemos em «boa forma física»), para poder ser, talvez um dia, recrutado para uma «missão» precisa e limitada, uma prestação «determinada»[1]. A empregabilidade traduziria assim uma espécie de potencial disponível, a que o mercado recorre de acordo com as suas necessidades (é, aliás essa uma das interpretações possíveis - a do patronato, designadamente - do modelo da "flexigurança") e o indivíduo, de acordo com esta interpretação, mais não teria do que se manter em estado permanente de disponibilidade.
Choca esta perspectiva com uma outra, que é a que articula(ria), ainda, a temporalidade de um percurso de estudos e a qualidade de uma "carreira profissional"; particularmente para aqueles que seguiam percursos de estudos mais longos, essa construção idealizada (porque distante no tempo) de uma carreira (legitimada por uma preparação académica igualmente longa) assentava num outro postulado muito contemporâneo, no campo educativo como no campo profissional - o projecto. A ideia de projecto como a ideia de se projectar na acção, pressupunha uma espécie de investimento cego", cujo retorno era, justamente, o lugar de classe privilegiado.
A massificação do sistema de ensino, e particularmente do ensino superior (se a população diplomada com estudos superiores é ainda baixa - cerca de 10% - é a tendência exponencial do seu crescimento que se afigura relevante) pareceria permitir esbater as diferenças em termos de oportunidades, e tal pareceria um ganho social, plasmado na crescente valorização dos projectos individuais, o que reflectiria uma sociedade globalmente mais culta, na qual, face à estrutura produtiva a questão que se colocaria não seria se "podemos ser todos doutores", mas se esse acréscimo de qualificações poderia significar igualmente um acréscimo da qualidade do trabalho e da organização do tecido produtivo.
Contrariamente à ideia que o relatório acima referido poderia deixar antever - estuda-se a procura de emprego dos diplomados, não para repensar a estrutura produtiva, mas sim para eliminar cursos que parecem não ter resposta no campo do trabalho - acreditamos que, se esta mentalidade da subordinação dos sistemas de ensino e formação aos sistemas de trabalho não se alterar, mais habilitações traduzir-se-ão numa crescente desqualificação profissional, o que, em definitivo, também se traduz numa desqualificação da própria qualificação académica: não é isso que Bolonha evidencia ao reduzir a temporalidade das licenciaturas? Não é aquilo que parece verificar-se no mercado de trabalho, onde o sentido da empregabilidade parece bem traduzido pela precariedade das condições de prestação do trabalho? Se tivermos presente que 66% dos desempregados com habilitação superior estão inscritos nos centros de emprego à procura de um novo emprego (contra 34% à procura do 1º emprego), não é esta precariedade que parece confirmar-se?
Não serão igualmente sinais de uma sociedade globalmente mais equalitária -designadamente segundo o género, representando hoje as mulheres 59,6% da população com habilitação superior - que evidenciam um atavismo no jusante que é o mercado de trabalho, onde estas mesmas mulheres representam 70,9% da população desempregada com ensino superior? Parece interessante ainda constatar que numa profissão fortemente feminizada como é a de professor(a)/formador(a), e cruzando a dimensão da precariedade com a do género, se constate que em Dezembro de 2007, 67,3% dos desempregados com habilitação superior inscritos nos centros de emprego pertenciam à faixa etária dos 25-34 anos e que, por outro lado, na mesma data 87,9% da população naquelas condições era do género feminino.
Poderia, em síntese, tomar uma outra qualquer variável para traduzir ganhos sociais decorrentes da massificação do sistema de ensino e, em contraste, do forte anquilosamento do tecido produtivo, mas também das políticas do trabalho. O que se erige em valor de desenvolvimento e modernização - a tecnologia, o conhecimento, a inovação - é, ainda e sempre, uma promessa política (promessa porque estabelecimento das condições de sucesso), que contrasta com os termos da sua possibilidade.
Ou não. Ou não e uma coisa não contrasta com a outra. Ou não e a promessa política carrega uma significação individual, mas está simultaneamente destituída de qualquer significação social. Como diz Ehrenberg (1991: 279), "estamos na idade do indivíduo banal, ou seja, uma idade na qual todos e cada um deve(m) expor-se pela acção pessoal afim de produzir(em) e mostrar(em) a sua própria existência em vez de se recostar(em) em instituições que agem em seu lugar e falam em seu nome"[2]. O lugar da individualidade é, igualmente, o lugar da responsabilidade individual; a promessa política não é irresponsável porque não tem projecto social. É "a formação de uma mentalidade de massas cujo pedestal é o governo de si" (id).
É, ainda segundo este autor, o tempo do indivíduo trajectória, esse mesmo que detém uma mobilidade indeterminada, um estado de empregabilidade permanente.

[1] - DUBAR, Claude (2000) La Crise des Identités: l'interprétation d'une mutation, Paris : PUF.
[2] - EHRENBERG, Alain (1991) Le Culte de la Performance, Paris : Hachette Littératures.

Henrique Vaz


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 179
Ano 17, Junho 2008

Autoria:

Henrique Vaz
Assistente da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Henrique Vaz
Assistente da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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