Para "A Página da Educação", que no passado dia 13 se salvou de uma morte anunciada
No Verão de 2006, uma guerra de surpresa e muito violenta opôs sobre o solo libanês o exército israelita e o Hezbollah. Como dar conta de uma tal guerra, fazer filmes num país, numa região em permanente conflito? Pode existir ficção neste local? Podemos inventar uma nova lição do olhar, de dizer esta dor? "O que pode o cinema?" Para responder a esta questão dois cineastas, Joana Hadjithomas e Khalil Joreige, dirigiram-se para lá e filmaram. O diário dessa rodagem foi publicado na colecção "Carnet de Cinéastes" pelos "Cahiers du Cinéma". "Decidimos fazer uma experiência no sentido literal do termo. Convidamos uma actriz, o ícone de uma certa ideia de cinema, Catherine Deneuve. Quando chegou a Beirute encontrou-se com o nosso actor fetiche, Rabih Mroué, originário do sul do Líbano, de uma aldeia junto à fronteira e que foi destruída na guerra deste Verão. Não voltou lá. Catherine e Rabih vão fazer a viagem para o sul juntos. Este périplo não tem guião. Catherine e Rabih partilharão a viagem sem saber qual é o destino. Nem um nem outro leram o argumento. Filmamo-los através de um dispositivo que nos permite captar o imprevisto, que lhes permite improvisar. Para fazer um filme assim é necessário um sem número de autorizações: Secureté Génerale, exército, polícia libanesa, a FINUL (Força Interposição das Nações Unidas no Líbano), o Hezbollah, Israel (por intermédio da FINUL), a Embaixada de França, enfim, que nos impõe uma escolta para Catherine Deneuve... A preparação é tão complexa e incerta, as tomadas, tão problemáticas nesta zona explosiva, que a fabricação do filme se torna num assunto do argumento. Encontramo-nos também nas imagens. Catherine e Rabih representam-se a si próprios, como nós os realizadores, a equipa, a escolta, assim como os soldados que encontramos, o comandante da FINUL ou o embaixador de França... Paradoxalmente, tudo é escrito mas não é verdadeiramente representado, tudo é vivido. Catherine e Rabih não se encontraram antes da rodagem. O filme regista o embaraço da primeira cena entre os dois, a evolução da sua relação. Rodamos de forma cronológica e deixamo-nos afectar pelo que acontece. Ambos partilham uma experiência comum, a da descoberta das ruínas, do Sul, da beleza da paisagem, do outro, mas também do medo... A presença de Catherine cria um onirismo improvável num tal cenário. De facto, ela afasta a ficção Depois das ruínas de Bint e Jbeil, nas paisagens surpreendentes do Sul, Rabih invoca o cinema, representa para Catherine um monólogo de "Belle de Jour" e depois tradu-lo para árabe..."Não sei como te explicar, há tantas coisas que gostaria de te dizer..." Na aldeia de Bint El Jbeil, totalmente devastada, não sabemos o que fazer. Não sabemos como filmar, como filmar as ruínas, atentos à necessidade de não estilizar. É uma das preocupações do nosso trabalho plástico e cinematográfico mas...perdemo-nos na imensidade das destruições. Contentamo-nos em seguir Rabih. Aquela aldeia foi, é, a sua terra. Procura a casa da sua avó, a da sua infância. Catherine acompanha-o na procura mas mantém-se à distância, respeitosa mas atenta, um pouco desorientada também no meio de tudo aquilo. O tempo, de repente, cobre-se. Uma luz amarela apocalíptica cobre tudo e impregna a película. E depois a natureza...paisagens desertas, magníficas, estendem-se à nossa frente, mas um milhão e meio de bombas que não rebentaram...permanecem. Aviões israelitas sobrevoam-nos, ultrapassam a barreira do som, provocando deflagrações sonoras terríveis... No Líbano chamamos a isso "raides ilusórios" ou "ataques imaginários" Rabih explica que é para fazer fotografias ou para assustar. O perigo é latente, difuso. Por todo o lado, o medo ressurge por vezes e submerge-nos. Depois retira-se, deixando-nos espantados por lhe termos sucumbido... Na fronteira do Líbano e Israel, somos imobilizados por problemas de autorizações. O posto tem um batalhão ganês, o nosso interlocutor é espanhol, o comandante italiano. Há vários eixos para onde não podemos dirigir a câmara. A estrada que se estende diante de nós está habitualmente interdita. Vê-mo-la como a representação do que procuramos defender, um outro território que ele também nem está aqui nem lá, um território que escapa às nacionalidades que é o da arte e do cinema. Poderemos justamente graças ao cinema, graças à presença de Catherine Deneuve, abrir excepcionalmente esta pequena estrada para o tempo de um plano? Terá o cinema poder para isso? Mais à frente recolhe-se tudo, ferro, metal, tudo o que pode ser vendido. O resto ...deita-se ao mar. Edifícios inteiros, quartos de dormir, salões, muros, móveis, bocados de tecido...vidas inteiras desaparecem nesta água que se tornou castanha. Brevemente não haverá nada para ver..."
P.S. Os "Cahiers du Cinéma » estão novamente em perigo?o grupo « Le Monde » pô-los à venda...ainda há quem diga que a concentração dos órgãos de informação é um benefício.
Paulo Teixeira de Sousa
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