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A taberna

Na taberna há cheiro a vinho,/Há videiras a dourar,/Aromas de bebedeiras,/Aduelas, pipas, lagar,/Moedas gastas no mármore/Lavado com panos velhos,/A luz estendida e ténue/Nos olhos que são os espelhos,/Em rostos que num esgar/Se apagam pelas tardes matreiras/Até a taberna fechar.

Outros tempos os do carvoeiro a coberto da flacidez da luz, a que o balcão encobria uma metade da vida, a sua, e que ele insistia em guardar para si até na ocasião em que o espírito, o seu génio das pipas, se libertava ou na algazarra surda ou na intimidade de uma visita que preenchia a tristeza enquanto se esvaziavam dois copitos. Nunca se esgotou a ginja, o sabor dos copos de três a que a necessidade mingou as medidas, de que só ficou o nome por respeito à tradição, nem o carvão que era meio sustento. Não consta que pagasse impostos, que lavasse as mãos, que mesmo no marasmo das pielas ele arrecadasse ao bolso uma fatia dos trocos, que negasse por alturas disso uma garrafita de água-pé. Bastava que fosse cliente de confiança, e se lhe cheirasse a forasteiro no bairro deixava que o instinto ditasse e ia pela fronha suplicante e acrescentava um escudo por conta do vasilhame. Não se fazia pagar por saber ouvir a calar, pelos conselhos em que se diplomara enquanto os calos cresciam e as unhas encardiam, por encobrir as dívidas às mulheres que o acusavam das desgraças domésticas, e ria para não transparecer a chaga que era dele, ria com as caricaturas dependuradas no estuque podre da parede porque só ele lhes conhecia os verdadeiros nomes. O fedor era o seu melhor cartão de visita, nem ele ou os convivas poderiam viver sem ele, o aroma que enchia meios pulmões e despertava a sede como outra publicidade não logra. Depois de muitas atoardas, de juras repetidas, das convicções em como o mundo se poderia endireitar e em como lhes conheciam os vícios, vinha, de quando em quando, a zaragata à superfície. E, se o vinho não abonava em favor de grandes proezas de pujança e destreza, os músculos engelhados e tesos do carvoeiro bastavam para pôr ordem onde ela nunca imperara. E, no dia seguinte, a névoa de uma noite mal dormida fazia brilhar o mármore desinfectado onde os vidros riscados eram como cristal, e as madrugadas aconchegavam-se de um trago com os sorrisos de pouca dura. As primeiras alegrias antes das cangas, antes do ocaso prematuro das artes da preguiça, o travo quente que minava as vísceras no hábito indomável, o destino torto a fazer de miragem para alívio das dores sem remédio. E, a essas horas, não havia tempo para conversa na urgência de riscar um dia mais do calendário, apesar de as palavras ainda não saírem empasteladas, de as asneiras serem comedidas, de haver afinal fome de novidades que se regava como se aduba um areal sem esperança.
Feneceram as pipas e as medidas de três, a água-pé, o carvão e a zaragata provocada pelas anedotas e os mal-entendidos, feneceu o palavreado e a linguagem desbragada. O carvoeiro, sem ter concretizado um único sonho seu de ver a liberdade espumar como a cerveja não espumava, assombra agora a cave restaurada por um proprietário de agência de viagens cuja gravata promete uísque e champanhe de borla em busca do exotismo ao alcance do vulgar cartão de crédito e de duas tretas para conseguir o melhor destino pelo menor preço. O prazer foi entretanto cotado em bolsa, proibido na forma dos gestos banais, o prazer das confidências adocicadas pelas ginjas tem ouvidos de carrasco, há lavatórios de pecados em todas as esquinas, e nos palanques insinua-se a perdição de quantos não cortem as unhas e ousem trocar uma letra nas juras de lealdade ao reino em que já nem os miúdos sabem o significado de reinar. Só o carvoeiro limpava as mágoas como ninguém, com o seu pano velho e desfiado e com as suas gargalhadas enfunadas ao vento das bebedeiras, mas já partiu em busca da felicidade em terras que dizem aos netos serem o céu, para que não percebam que o avô não regressa nem serve já vinho tinto onde quer que seja.
Para as amarguras há agora tira-nódoas, requerimentos à espera de que seja restituída a posse da saúde, drogas em caixa que estrangulam a angústia por umas horas, há dicionários com magias e boas garrafeiras, revistas com caras de pessoas alegres, há tudo menos um carvoeiro que, entre desabafos, nos explique que a melhor coisa deste mundo é ter dois dedos de testa, um copo à frente onde e quando quisermos e sobretudo não dar muito nas vistas, para o caso de a moda pegar e alguém perceber que pode fazer negócio com a liberdade.

Luís Miguel Brandão Vendeirinho


  
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Edição:

N.º 177
Ano 17, Abril 2008

Autoria:

Luís Miguel Brandão Vendeirinho

Luís Miguel Brandão Vendeirinho

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