Se "Die Nibelungen" (1924), de Fritz Lang, antecipa as mitologias pop de "Batman" a "Star Wars", o seu filme de espionagem, de quatro anos antes, parece antecipar as intrigas românticas de Graham Greene, para não mencionar a parafernália de Ian Fleming, especialmente as versões do cinema (007 é claro!). Não menos sugestivamente, o uso da paranóia e conspiração pelos não menos "mainstream" Jacques Rivette ("Out 1") e Thomas Pynchon ("Gravity's Rainbow") parece seguir os mesmos caminhos e as mesmas sedutoras mensagens cifradas, intrigas eróticas, e múltiplas histórias paralelas de "Spione". Paradoxalmente, o resultado do estilo de Lang pode ser descrito como mais objectivo e distanciado e ao mesmo mais abstracto e próximo do sonho, porque as continuidades estabelecidas são mais metafísicas do que físicas, e às vezes mais irracionais do que racionais. Por isso as cenas mais voluptuosas, tornam "Spione"o filme mais erótico da sua fase alemã, e talvez o único (descontando alguns dos momentos loucos de "Metropolis") que raia a pornografia. Significativamente, o vilão, Haghi (Rudolf Klein-Rogge - que já tinha sido o protagonista em "Dr Mabuse, der Spieler" e Rotwang, o "mau" em Metropolis") - é mais central e proeminente do que o herói (Willy Fritsch), que é identificado apenas como "Nº326". Arquitecturalmente, é Haghi a primeira e última personagem de importância que vemos no filme. Ele é o principal suporte da ficção de Lang, aguentando toda a estrutura, porque toda a narrativa leva ou afasta-se dele. É aqui que realmente Fritz Lang faz a diferença em relação a Hitchcock: este interessa-se por heróis e aquele por vilões. Lang partilha com Orson Wells o gosto por usar personagens poderosas e autoritárias forjando, como diz Jonathan Rosenbaum, uma espécie de autocrítica da sua própria prática artística e da sua vontade de poder. Difere de Wells usando outros actores em vez de ele próprio para fazer estes papéis e no seu ênfase no sadomasoquismo - assim como o seu curioso interesse nas personagens de tiranos e de proxenetas, especialmente notório em "Spione". "Spione" foi directamente inspirado por um artigo publicado no "London Times" de meados dos anos 20 do século passado sobre o chamado "Arcos Raid". Uma unidade especial da Scotland Yard fez um raid sobre uma companhia russa chamada "All Russian Co-operative Society" (ARCOS) sob suspeita de ser um ninho de espiões. Para se assegurar da verosimilhança, Lang quis explorar os títulos dos jornais da época e os medos públicos. Anos mais tarde, para alcançar uma fruição diferente, combinou tudo isto com análise social em "M" - que já tinha tentado anos antes em "Dr. Mabuse, der Spieler". Contudo, este impulso em "Spione" é mais difícil de separar da consciência social de Lang e dos seus impulsos analíticos do que inicialmente se poderia supor. O crítico Tom Gunning argumenta que Lang mais tarde confundia "Spione" com "Dr. Mabuse" quando descrevia a influência de acontecimentos contemporâneos nos seus filmes. Norbert Jacques, cujo romance deu origem a "Dr. Mabuse", era culturalmente mais respeitável do que Pierre Souvestre e Marcel Allain - os dois autores do original "Fantômas feuillton"-, pelo menos porque era visto como um comentador social e não um mero contador de histórias. Mas, o desejo de explorar os medos públicos pode ser encontrado nas duas fontes. Pelo menos parte da diferença de prestígio cultural entre, digamos, "Fantômas" e "Dr. Mabuse", ou entre este e "Spione", era atribuída à moda. Mesmo os surrealistas franceses, em jeito de provocação, defenderam o folhetim de Feuillade em 1928 - o ano de estreia de "Spione" - sem referir o nome do realizador. Uma personagem de um romance de Aragon e de Breton diz: "É em "Les Vampires" que se deve procurar as grandes realidades deste século." Os intelectuais alemães deste período como Rudolf Arnheim e Siegfrid Kracauer que mais tarde olhariam com respeito para "M", olharam para "Spione" com desprezo. Comparando "Spione" com "Dr. Mabuse", Kracauer escreveu que os dois filmes "abstinham-se de conferir superioridade moral aos representantes da lei. Espionagem e contra-espionagem estão ao mesmo nível - dois bandos lutando um contra o outro num mundo caótico. Contudo há uma diferença importante: enquanto Dr. Mabuse encarna o tirano que se aproveita do caos à sua volta, o chefe dos espiões - Hagi ? está metido no negócio da espionagem com um único propósito...espiar. É um Mabuse formal, devotado a actividades sem significado." Reparem se não foi o que algumas pessoas disseram nos anos 60 e 70 sobre os filmes de espionagem e de gangsters.
Paulo Teixeira de Sousa
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