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O voluntarismo inspirado: Contributo para uma reflexão

Num tempo educativo marcado por tantas desilusões e descrenças, temos vindo a aprender à nossa custa como o voluntarismo iluminado (Correia e Matos, 2001), entendido como modo de acção política, pode conduzir à afirmação de um autoritarismo que, embora se afirme em torno de valores e de propósitos distintos do autoritarismo tradicional, não deixa de se caracterizar, como qualquer outra forma de autoritarismo, por entender as relações entre as pessoas como uma relação feita de subserviências várias.
Se nas velhas formas de autoritarismo essa subserviência teria que adquirir visibilidade pública como condição da sua própria afirmação, na forma de autoritarismo que o voluntarismo iluminado consubstancia, a subserviência tende a justificar-se em nome da reivindicação de uma educação mais humana e da superioridade de um determinado tipo de conhecimento técnico-pedagógico que, sujeito à interpretação, quantas vezes canhestra, dos demiurgos de serviço, tenderia a garantir a possibilidade daquele projecto de humanização poder vir a ocorrer, sobretudo, no âmbito das escolas públicas de Educação Básica ou nas vias menores da Educação Secundária que, nos tempos que correm, parecem constituir a panaceia para todo o serviço.
Apesar de ser necessário analisar de forma mais cuidadosa um tal projecto, é importante, para já, reconhecer que é em seu nome que tudo se justifica, mesmo que a angariação de adeptos se faça à custa quer do sofrimento profissional, tão inútil quanto insensato, dos professores, quer da sua identidade sócio-profissional que se passa a definir em torno do cuidar, quando seria de esperar que se configurasse em torno do educar.
É face a uma tal estratégia, que o voluntarismo inspirado se tornou numa espécie de ideologia oficial do regime, depois de desossado do seu registo utópico, de forma a poder ser usado como sustentáculo do espírito de missão que, assim, passa a ser entendido como condição incontornável do exercício da profissão docente. É, neste sentido, que se considera que o voluntarismo inspirado acabou por ser apropriado como um instrumento de legitimação capaz de sustentar políticas educativas que assentam em três ideias fundamentais: (i) uma que diz respeito ao facto de, nas escolas públicas, os alunos e as respectivas famílias deverem ser entendidos não tanto como parceiros, mas mais como consumidores; (ii) outra, através da qual se defende que, nesses contextos, as intervenções se definem mais como intervenções de natureza sócio-educativa do que propriamente como intervenções de carácter educativo e (iii) uma última ideia que tenderia a afirmar a necessidade dos professores terem que assumir novos papéis enquanto participantes do projecto de redenção social que a Escola deverá promover. Será isto desejável?
Não cremos que o seja, ainda que tenhamos que reconhecer que, hoje, esta é uma discussão difícil de realizar, porque, por um lado, o voluntarismo inspirado sustenta uma mensagem sedutora, respondendo ao processo de demissão social e educativa que, por razões diversas, se tem vindo a empreender nas sociedades em que vivemos e, por outro, porque se corre o risco da recusa do voluntarismo inspirado ser difundida quer como a defesa de um determinado «status quo» nas escolas que importa, de facto, pôr em causa, quer como evidência de uma atitude através da qual se continuaria a admitir que os professores não têm que assumir compromissos, o que, na verdade, não se defende nem se recomenda.
O maior problema do voluntarismo iluminado tem a ver, em suma, com o facto de erigir a generosidade, mais do que a reflexividade, como referencial da acção docente, impedindo, assim, os professores de pensar os limites da Escola e da sua acção educativa, não para justificar a sua inacção, mas, sobretudo, para esclarecer e evidenciar os sentidos da acção que devem e podem protagonizar. Sendo este um propósito que qualquer exercício de retórica contempla, há que reconhecer, no entanto, que, no actual momento, a reflexividade docente não parece ser uma competência tão valorizada como essa mesma retórica dá a entender, a julgar, pelo menos, pelo novo regime de gestão e de administração das escolas, onde a fonte de todos os exercícios de reflexão que aí possam ter lugar irá radicar, sobretudo, na acção dos politeburos que vão passar a governar essas mesmas escolas.
Em suma, verifica-se, mais uma vez, que a generosidade em excesso mata, sobretudo quando, em seu nome, se impede a reflexão e a acção partilhadas e construídas em comum. Não é que estejamos a retroceder no tempo, porque esse tempo, em boa verdade, nunca existiu, situação que não permite justificar, no entanto, que se tenha desistido de pensar e de estimular os educadores e os professores a assumirem-se como intelectuais e cidadãos de uma sociedade que, apesar de tudo, se continua a reivindicar como uma sociedade democrática.

Ariana Cosme
Rui Trindade


  
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Edição:

N.º 175
Ano 17, Fevereiro 2008

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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