Sentado no velho café "Ceuta", em tarde quente de Agosto, recordo como por estas mesas se desenrolaram algumas longas e animadas conversas com o Poeta de Noite de Pedra, quando pelo Porto de infância e adolescência descobria o mundo nas sombras e lugares dos passos perdidos e espalhados nos caminhos de desassossego e de aflição. Passam agora vinte anos sobre a morte de Luís Veiga Leitão, poeta que foi de muitos sonhos e combates nos seus passos de andarilho pelo mundo, ainda na lembrança dos postais com os seus desenhos a tinta-da-china recebidos de Cagliari, Sardenha, Baikal ou Niterói, no Brasil que foi poiso de aventura e de trabalho para aí se proteger da odiosa vaga salazarista e nas terras de Vera Cruz escrever alguns dos melhores livros de poemas e ouvi-lo dizer-me em jeito de desabafo. - Olhe, meu amigo, a vida lá não é mole, a vida lá é fogo. Nesta hora de silêncio e memória, evoco o que é para sempre uma sentida saudade pela solidão e quietude da morte de Luís Veiga Leitão e sei que não fomos viajantes indiferentes da mesma galáxia nas conversas animadas em cafés do Porto ou de Lisboa, nos encontros que foram permanentes depois do seu regresso do Brasil já depois de Abril ter chegado e vezes sem conta comungámos dos mesmos anseios e ideias. Vinte anos depois da sua morte, escuto-o ainda no silêncio da noite, e digo que não era de pedra, em passeio descontraído e gesticulante desde a Rotunda da Boavista até à baixa portuense, ao luar e ao sonho de não haver pressa na despedida, mas concluída ficou a nossa conversa à esquina da rua Sampaio Bruno quando ia alta a lua na mansão da morte / já meia-noite com vagar soou, diria Soares dos Passos se estivesse a nosso lado, e o Poeta, à luz ténue de um candeeiro alto e à espera do autocarro para o regresso a casa, dizia ainda estes versos: Tudo principia no princípio / nascimento e a morte / o dentro e o fora de mim / tudo principia no princípio / o poema principia no fim. Entendida a poesia de Luís Veiga Leitão como matéria de renovada criação expressiva e assumida claramente como arma poética, posso declarar que em Latitude (1950) já se notavam as linhas de um singular percurso sofrido e dorido, marcado pela paixão e revolta que, na afirmação de Jorge de Sena, mostrava "a sua simplicidade ingénua e forte, que transcende todo o literatismo apaixonado em que muito neo-realismo se perdeu". E foi sobretudo com Noite de Pedra (1955) que se enquadrou nitidamente na segunda vaga poética do neo-realismo como uma das vozes representativas da sua geração, marcada por um prolongado silêncio quando o Poeta se fechou no seu canto, viajou pelo mundo, ouviu os comentários críticos, consolidou impressões sobre as leituras desse universo e quebrou com Ciclo de Pedras (1965) um interregno de dez anos, podendo proclamar: No silêncio do caminho aberto /quanto maior a alma maior o deserto, / maior a sede e a miragem / do mundo à nossa imagem. E por essas imagens do mundo, amassadas e pressentidas por dentro, na realidade do canto e do sonho, o Poeta as soube cantar de forma mais grave e violenta em muitos poemas de Noite de Pedra, por ter sido um livro em que alcançou uma depurada expressividade e, no desejo de cantar a solidão e o desespero, foi a forma revelada de comunicar com quem estava para lá das grades, num mundo fechado e violento erguido como símbolo de revolta e de insatisfação, mas ainda de memória e paixão, onde o sol não entrava e o mundo não corria à medida dos sonhos sonhados, quando a "sentinela" não dormia e escutava também esse canto, mesmo que de todo o não entendesse: Noite de pedra / cerração de muros / arames farpados / grades de ferro / cruzes de ferro / nas campas rasas / duma luz morta. Oriundo de Moimenta da Beira, nessas terras altas e do demo ou de Aquilino, como gostava de dizer, mas de uma região que não esteve muito presente nos seus poemas por serem mais marcantes as sombras e lugares de outros sobressaltos portuenses, para quem pessoalmente o conheceu e lhe ouviu muitas proezas das suas vagabundagens, Luís Veiga Leitão foi de facto um lazzerone, que na sincera opinião de Óscar Lopes sempre se mostrou "desprendido, sereno, deliciado em simplesmente conversar, em insistir nas suas impressões e histórias, com efeitos calmos e regalados de paragem discursiva e até de mímica com remates de uma entoação ironicamente e comedidamente surpresa". Vinte anos passados sobre a sua morte, que aconteceu em 9 de Outubro, exactamente no mesmo dia em que vinte anos antes o celebrado Che Guevara foi barbaramente assassinado nas florestas bolivianas às mãos dos militares a soldo de outras gentes, sei como Luís Veiga Leitão ainda fala comigo em muitos poemas, crónicas e fábulas, entrecruzadas com as não esquecidas conversas de tantos anos, no Porto ou em Lisboa, na distância de serem outros e diversos os nossos passos. Mas se "os poetas não têm idade", como gostava de proclamar, na memória que guardo e mantenho viva da figura de Luís Veiga Leitão, declaro que pela saudade de pedra que me invade nesta tarde de outro Agosto, sentado à mesa do "Ceuta" em tempo de peregrinação pela cidade, e na releitura dos seus poemas, digo em voz alta e na recordação que perdura de outros poetas que foram de idêntico convívio, que o Poeta de Noite de Pedra continua vivo e, sem qualquer irreverência, posso dizer que a memória de Luís Veiga Leitão nitidamente se perpetua nos seus poemas como um "ciclo de pedras" que não se fecha e numa das ruas do Porto em que viveu, perto da que dá pelo nome de rua da Saudade, e ouvi-lo ainda cantar como se fosse um certo Catulo da sua Paixão Portuense: Fora, na vida tumultuária ,/ foste uma doce e boa companhia / mas aqui, muito mais, Poesia, / foste necessária.
Luís Veiga Leitão OBRA COMPLETA Edição organizada por Luís Adriano Carlos e Paula Monteiro Editora Campo das Letras / Porto.
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