Oitocentos anos de História, dizem, espalhados por outros tantos quilómetros de costa peninsular e marítima, paisagem dividida em duas partes pelas águas do Tejo, que corre de Albarracim e atravessa calmo as terras de Aranjuez e Toledo, desaguando as suas mágoas no coração da capital lisboeta já sem fragatas, faluas ou bergantins de outros tempos. Olha-se e percorre-se esta faixa continental em dois tempos, é um modo de dizer, não há muito mais para nos causar espanto. O que sobra da paisagem é ainda esse sal de um colectivo desespero na proclamada brandura dos nossos costumes. Tretas! Somos diferentes de outros povos por sabermos silenciar o desencanto que ciranda num e noutro sentido. E pouco mais. Antes de Abril, o flagelo fascizante vigiava todos os actos e palavras; depois de Abril, outras desvairadas águas passaram por debaixo da ponte que foi Salazar de má memória. Mas não aprendemos muito. O que resta da nossa aventura pelos longes dos anos já corridos, não basta para encher o saco da viagem que acabou em Novembro triste de 1975. Na cobardia escondida e encapotada dos bombistas ou no cruzar das espadas para outras futuras revoluções. Talvez necessárias, mas ainda por haver. E na saudade que guardo de Alexandre O'Neill, na admiração pela poesia que de si sempre posso ler e no silêncio em que repousa no cemitério de Benfica, o Poeta de "Feira Cabisbaixa" ainda me diz ao ouvido:
Ó Portugal, se fosses só três sílabas, linda vista para o mar, Minho verde, Algarve de cal, jerico rapando o espinhaço da terra, ó Portugal, se fosses só três sílabas de plástico, que era mais barato.
E a seu modo, num estilo bem pessoalíssimo, Fernão Lopes foi cronista implacável do seu tempo, mesmo que nas andanças pelos paços reais focasse de preferência o quotidiano da época que caminhava lenta, sem as arrelias e perturbações do nosso tempo incómodo e fatigante. Mas ser cronista deste tempo e mundo, estar bem atento ao que se passa intramuros numa cidade como Lisboa, capital-do-país-todo, não é tarefa que agrade, por ser preciso ter uma atenção lúcida e intervencionista. E, mesmo com simpatia, Lisboa não se pode encarar de olhos vesgos e sem um sorriso nos lábios: existe de tudo nesta grande-pequena cidade europeia, nos anos iniciais do século vinte e um, acontece um pouco de tudo nesta urbe com mais de um milhão de habitantes à hora de ponta, no vaivém dos cacilheiros de uma para a outra banda. Não se conhecem bem os limites da cidade e não se pode percorrê-la numa noite como el-rei fazia ledo ao som das trompas de prata. Lisboa cresceu, estendeu-se, tem muita gente que não é daqui, e isso pouco importa. Lisboa não passa de um corpo macrocéfalo e alguns quilómetros de extensão, e é hoje, como dizem os cartazes espalhados em cada esquina, um pólo de atracção turística ou esse "slogan" já gasto de ser o eixo fulcral de muitos negócios, hoje contados em milhões de euros em tempo de comunidade europeia. Cidade que cativa as gentes que chegam da província e se instalam, como podem e é possível, nos arredores que entram cada vez mais pela cidade adentro. E assim, mesmo com alguma simpatia, Lisboa é uma cidade grande, largos milhares que trabalham, comem, dormem, passeiam, divertem-se, vão muito ao futebol e menos ao cinema e ao teatro, lêem os jornais, sobretudo os desportivos, claro, vão às docas de Alcântara, a Alfama, ao Bairro Alto, às Amoreiras ou ao Colombo, frequentam ainda às casas típicas, bares e discotecas, já não têm a Feira Popular ou o Parque Mayer, mas gozam ainda que se fartam na Feira da Ladra e do Relógio, passeiam pelo Parque das Nações, vão ao Casino de Lisboa perder alguns maravedis que lhe fazem falta para outras coisas na triste ilusão de enriquecer do pé para a mão, coitados, visitam o Centro Cultural de Belém e a colecção Berardo para excursionista ver - enfim, as gentes lisboetas passam o tempo enquanto o tempo deixa, nas vinte e quatro horas do dia, sofrem muito quando o Benfica ou o Sporting perdem ou passam os dias de Verão na Trafaria e na Caparica, mas dizem aos vizinhos que foram lavar o corpo nas areias de Punta Cana ou Maldivas. Vivem numa agitação constante e o barulho ensurdecedor do trânsito e, por mais viadutos, túneis, crel's e cril's que se construam as dores de cabeça não desaparecem e juntam-se às do orçamento familiar tão desequilibrado. Em Lisboa vive-se como se pode, estendem-se as pernas, vê-se a Gina Llolobrigida que chega toda sorridente ao aeroporto da Portela para uma festa da Lili Caneças ou qualquer programa televisivo demasiado pobre e goucha... Em Lisboa, no começo deste século e já depois de Abril ter chegado e colocado a capital em polvorosa por pouco tempo, na memória de uma classe política na sua maioria inculta mas ávida nas manigâncias do poder, que despontou e até hoje não se renovou, neste século que não é de outras luzes e certamente de outras trevas, com um governo socialista e socrático sem bússola que o oriente e trace outro rumo, mas afinal não passa de um barco à deriva que a todos nos aflige, vive-se como se pode e nos deixam, já que este pedaço de sol e de céu azul é pago a peso de oiro, fica caro, e ninguém faz contas... Por isso, ser cronista de Lisboa é talvez correr o risco ou o perigo de ser moiro nos domínios de el-rei ou judeu que "depois do sol-posto fosse achado pela cidade" e "com pregão publicamente açoitado por isso"... Mas Lisboa tem muito de provinciana, a par de um cosmopolitismo disfarçado ou encoberto de ser ou ainda querer ser "capital da cultura" neste ano da graça de 2007. E todavia não é cosmopolita quem quer, nem é civilizado quem mais o deseja. E assim o queirosiano homem de Tormes de "A Cidade e as Serras" continua vivo em qualquer cidadão pacato e burguês desta Lisboa moderna, segue ao volante de um Chevrolet emprestado, como era o de Álvaro de Campos pela estrada de Sintra ao luar e ao sonho, a loira mulher espigadota e fartota num saia-e-casaco enfeitado de malmequeres vermelhos e azuis, os filhos guedelhudos no banco de trás, em passeio arrastado pelo Estoril, Cascais, Guincho, Malveira da Serra, Praia Grande, Colares ou Sintra de todos os devaneios. Mas ser contemporâneo desta nossa boa gente nestes anos iniciais do novo milénio, já depois de todas as tormentas dobradas e passadas, é na realidade ser talvez parente pobre de um futuro de que mal se vislumbram as raízes da própria árvore da vida. Não sei. E ainda evoco estes versos do irmão da Ophéliazinha a quem Pessoa escreveu cartas de amor que "nunca foram ridículas", esse Carlos Queiroz que foi um poeta triste, esquecido e nascido há cem anos e de quem quase ninguém se lembra, que proclamava com sincera ironia:
Português e vivo É diminutivo. Só fazemos bem Torres de Belém.
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