É possível criar anticorpos contra o "flagelo lingüístico" em curso?
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Para discutir essa questão, talvez se possa recuar no tempo e pensar a formação do leitor em plena hegemonia da escrita. Possivelmente, há um século atrás, matronas se ocupassem com leituras pias, enquanto donzelas e jovens senhoras se deliciassem com romances e senhores circunspetos lessem atentamente hebdomadários, romances de aventura e compêndios filosóficos. Quanto à escrita, os letrados exercitavam a troca de longas epístolas, recheadas de acontecimentos e reflexões, já que entre uma carta e outra corria um largo interregno. Hoje o cenário é outro. Imaginem o pasmo dos amantes da tecnocomunicação, ao saber que leitura e lazer podiam ser quase tomados como sinônimos naquele tempo em que as classes privilegiadas desfrutavam do ócio. Talvez possam retrucar que é impossível comparar a adrenalina da contemporaneidade ao marasmo do passado. Talvez contra-argumentem, demonstrando o quanto o horizonte se alargou, ao mesmo tempo em que as distâncias se encurtaram, tornando possível o impossível. E, sobretudo poderão festejar o fato do mundo ter perdido gravidade em favor da leveza desta era informatizada. Ocorre que essa leveza demanda precisão, sem o que técnica, conhecimento e arte não se sustentam. Como observou Calvino, vive-se na atualidade uma nova revolução industrial que, diferente da primeira, privilegia bits de um fluxo de informação. As máquinas pesadas das indústrias continuam a existir, mas tornaram-se obedientes aos bits sem peso e, ao mesmo tempo, cada vez mais concentradores de poder. Grandes mudanças, necessariamente, implicam ganhos, mas também perdas. Preocupado com estas, Calvino, ao se reportar à exatidão, denuncia uma epidemia pestilenta que já está a atingir a humanidade no que lhe é mais próprio - a faculdade da linguagem. Entre seus sintomas, estão a perda da força cognoscitiva e a imediaticidade que podem, senão embotar, simplificar e diluir a significação. As origens do mal são complexas e Calvino sugere que sejam pesquisadas na política, na ideologia, na uniformidade burocrática, na homogeneização dos mass-media ou na difusão acadêmica de uma cultura média. Esta última toca muito de perto a nós, professores universitários. Tenho experimentado preocupação crescente diante dos efeitos já visíveis da peste denunciada por Calvino. Tenho me perguntado se os freqüentes fichamentos de textos acadêmicos não têm acentuado os sintomas da tal epidemia. Ou seja, o que deveria funcionar como uma eficaz técnica de estudo, para muitos estudantes, sobretudo os oriundos das classes populares - que pouco ou nenhum convívio tiveram com a literatura e as artes - parece estar se convertendo senão em fórmula, em modelo de uma escrita soluçante. O autor cede lugar ao escrevente que se converte em reprodutor ou compilador de trechos que são editados sem imaginação e fio, sem coesão e coerência interna. Isso quando a tecnocomunicação não produz subprodutos danosos. A internet deixa um mundo ao nosso alcance, mas não basta conectar. De que adianta estar conectado, se o imediatismo tomar o lugar da paixão do conhecimento, se o recurso à internet se reduzir à troca de e-mails em linguagem cifrada e regressiva ou à astúcia fraudulenta de localizar e fazer imprimir um texto para usurpar a autoria de outrem? A despeito do quadro pessimista projetado em Seis propostas para o próximo milênio, Calvino vê uma saída: A literatura (e talvez somente a literatura) pode criar anticorpos que coíbam a expansão do flagelo lingüístico. Tal prioridade, possivelmente deriva do nexo criativo entre a palavra, a imagem e a imaginação. Sem a criação e a estética que nos comovem, animando a sensibilidade e a imaginação, embota-se a curiosidade que instiga o pensamento a conhecer. Cultivar a literatura e as artes é, pois, princípio ativo de prevenção e cura, mesmo porque sem sensibilidade e imaginação não há conhecimento nem tecnologia, nem arte nem técnica possíveis.
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Ficha do Artigo
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Edição:
Ano 16, Agosto/Setembro 2007
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Autoria:
Univ. Federal Fluminense, Brasil
Univ. Federal Fluminense, Brasil
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