Depois de se reformar como docente da cadeira de Didáctica do Português na Universidade de Aveiro, Idalécio Cação tem disposto agora de tempo para consolidar uma obra literária dividida entre a poesia, o conto, o ensaio, a linguística e a crónica, a par de uma clara intervenção cultural em colóquios, júris de prémios literários e ainda como colaborador regular de jornais e revistas. Mas nos seus livros está sempre presente a celebração das terras, usos e costumes, mesmo o modo de falar das gentes das terras da sua Gândara natal, sem esquecer as sombras e lugares da Figueira da Foz, Cantanhede, Vagos, Cacia, Tocha ou Mira, como de um modo excelente se revelara no livro de contos «O Chão e a Voz», em que retoma o mesmo sentido de denúncia dos problemas da região ou evoca os tempos da infância distante. Nas «Crónicas Gandaresas», que reúne muitas das prosas publicadas entre 2002 e 2003 no jornal "O Independente de Cantanhede", uma vez mais Idalécio Cação recupera a memória das terras de origem, onde nasceu e viveu no correr dos anos, as marcas mais visíveis de uma Gândara que pouco se alterou nas características geográficas, sociais e humanas das suas gentes, mas não deixa de o fazer sob um olhar sentimental de quem parece ter pena de que mesmo assim alguma coisa se tenha alterado pelos tempos fora. Mas redescobrir ou assim relembrar a Gândara que ainda está viva é o jeito próprio de Idalécio Cação fazer destas terras e gentes o retrato mais aproximado do que permanece ou talvez o seu modo pessoal de invocar outros tempos ou costumes na incessante busca que tem feito, a vários níveis literários e sob diferentes registos, da própria "identidade" de uma região que de todo não perdeu o seu fascínio e por isso é sempre motivo de novas leituras ou descobertas para quem entende a literatura (sobretudo no domínio da crónica e da ficção) como uma forma de afirmação. Tal como evidenciou nos contos de «O Chão e a Voz», Idalécio Cação coloca um sabor e um sentido literário muito peculiar na abordagem que sabe fazer da realidade social e humana rural e provinciana, mas também sabe pôr em evidência esse "modo de dizer" que é único e singular por se cruzar nas veredas de uma intenção ou expressividade que, pelos caminhos da memória, traz à superfície os sonhos e desesperos de figuras humanas que ficam na nossa lembrança, não por se erguerem como personagens de carne e osso, e sobretudo por preencherem esse quadro de uma experiência gandaresa sem limites, "finisterra" talvez de outros povoamentos humanos e geográficos. Se existem por aí muitos que tentam empurrar a literatura para uma situação de crise ou esvaziada de valores, propalando um certo desentendimento ou exagerando no esforço que fazem para enaltecer tão-só o que tantas vezes não tem nenhuma importância, a verdade é que a prosa de Idalécio Cação deve merecer uma demorada atenção pelas renovadas "pistas" ou valorização da linguagem como matéria de ficção literária, tal como aconteceu em «Daqui Ouve-se o Mar» e de novo se redescobre nestas «Crónicas Gandaresas». Mas se a arte é ainda essa forma superior de um homem falar aos outros homens, o acto de povoar a sua solidão ou ser arauto de outras verdades e razões, podemos reafirmar que a prosa literária de Idalécio Cação melhor nos faz compreender como a literatura, nesta viragem do século, se pode assumir de forma "comprometida" pela forma consciente, lúcida e aberta como o escritor se sabe posicionar diante dos problemas da vida e do mundo que melhor conhece.
Idalécio Cação CRÓNICAS GANDARESAS Cantanhede, 2006.
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