Portugal: ensino superior
Caro Mariano Gago,
Ouvi ontem parte do debate na SIC sobre o Ensino Superior em que participaste. A situação do nosso Ensino Superior é, de facto, muito difícil. Os erros vêm de longe e as dificuldades são devidas, em parte, a estruturas erradas que se mantêm, e a outras que faltam. Eu olho o Ensino Superior com olhos de quem nele assumiu responsabilidades há muito, muito tempo, mas isto permite-me ver coisas que quase ninguém vê. Como por exemplo: as nossas Universidades são estruturas que dividem regionalmente o país, mas faltam-nos estruturas horizontais que reúnam todas as escolas de medicina; todas as escolas de engenharia; todas as escolas relacionadas com a agricultura, etc, que deviam ser obrigatoriamente ouvidas pelo Ministério antes de criar novas escolas. Se estas estruturas (que deviam incluir as Ordens e outras estruturas profissionais) existissem, teria sido criada, por exemplo, uma Faculdade de Medicina na Covilhã ? Falemos do ensino da Medicina, como poderíamos falar de outros. Antes do 25 de Abril, havia três faculdades e nelas estava a entrar um número crescente de alunos, que chegou a cerca de 4.000 em Outubro de 1973. À medida que o número de alunos aumentava, a percentagem de chumbos nos primeiros anos, em particular nas cadeiras de Anatomia, diminuía. Assim, depois do 25 de Abril, o mais difícil problema com que se defrontaram os Secretários de Estado do Ensino Superior foi o de encontrar lugar nos hospitais para os estudantes de medicina do 4º ano. Além dos Hospitais Escolares e dos Hospitais Civis de Lisboa, foi necessário estender o ensino de Medicina aos Hospitais Pulido Valente, Egas Muniz , Curry Cabral, IPO, Hospital Militar, Hospital da Marinha. Pensando no futuro, o Secretário de Estado Avelãs Nunes que me precedeu, gizou um esquema em que os estudantes não entrariam para um primeiro ano de Medicina, mas para um tronco comum, com um ou dois anos, conforme as Faculdades escolhessem, que depois se bifurcaria em vários ramos, um deles Medicina. Em Outubro de 1975, não havia então numerus clausus, inscreveram-se cerca de 4.000 alunos neste tronco comum. A Faculdade de Medicina do Porto, em que se inscreveram 1200, fez logo saber que optava pelo tronco comum de um ano e que, no ano seguinte, só aceitaria 300 alunos em Medicina. O 6º Governo Provisório, nos seus 10 meses de vida, criou e pôs em funcionamento, a partir do zero, uma Escola de Medicina Dentária, criou um curso de Nutricionismo, assegurou o funcionamento de uma segunda faculdade de Medicina no Porto, o Instituto Abel Salazar, remodelou e admitiu professores para a Escola Superior de Educação Física do Porto, e convenceu a Faculdade de Medicina a aceitar no ano seguinte 350 alunos, que foram os que entraram. No entanto, no ano a seguir, voltou-se ao 1º ano de Medicina e a Faculdade de Lisboa admitiu todos os alunos do tronco comum, em Medicina. Os primeiros números clausus, não exactamente para Medicina, mas para o tronco comum, fui eu que os institui no final de 1975/76. Se o não tivesse feito, em Outubro, inscreviam-se 5000 estudantes. Fixei o número em 1600 pensando que destes seguiriam depois para Medicina cerca de 800. Fui depois acusado de o ter feito sem estudos suficientes. Mas, na sequência, durante décadas, as Faculdades, já cinco, baixaram as admissões em Medicina para números da ordem dos 350 ou 400 alunos, manifestamente abaixo das necessidades do país e das suas reais possibilidades de formação . Atribuo esta situação ao facto de não existir uma estrutura como a que referi, que reúna as faculdades, a Ordem dos Médicos e os Hospitais, para planear as necessidades do país e aconselhar o Ministério naquilo que deve fazer. Curiosamente, li há dias, num artigo, que o processo usado em França para distribuir os estudantes pelos cursos relacionados com a saúde é, exactamente, o pensado pelo Avelãs Nunes e a que eu depois dei seguimento. Fala-se agora muito em Bolonha. As comissões instaladoras nomeadas pelo Professor Veiga Simão para as novas escolas universitárias criadas pela chamada "Reforma Universitária de 1973" começaram todas a preparar cursos curtos de bacharelato de 3 anos, ou seja, cursos em conformidade com a actual declaração de Bolonha. Vários destes cursos já estavam preparados quando chegou o 25 de Abril, mas nesta data, o número total de estudantes nestas escolas era exactamente zero. No início do Verão de 1974, houve no Ministério uma reunião para se decidir o que havia a fazer com estas novas escolas. O Ministro Vitorino Magalhães Godinho decidiu continuar com todas as escolas Universitárias, mantendo as comissões instaladoras que, dum modo geral, eram formadas por professores com reconhecido mérito académico. O ano de 1974/75 foi um ano tumultuoso. Nesse ano foi criado um Serviço Cívico e, salvo pequenas excepções, não entraram novos estudantes no Ensino Superior. Mas todas as escolas se empenharam na preparação dos novos programas e cursos que deviam começar a funcionar em 1975/76. Em Setembro de 1975, quando tomei posse como Secretário de Estado do Ensino Superior e da Investigação Científica, estavam a começar a chegar ao Ministério as propostas das escolas. Assim, todos os cursos que funcionaram nesse ano foram autorizados com a minha assinatura. Favoreci, francamente, a criação de cursos curtos de bacharelato e tive de dialogar muito com as escolas, mas, hoje, posso dizer que todos os cursos que autorizei foram os indicados para preparar o país para a Declaração de Bolonha, que veio 30 anos depois. Em 1977, o Ministério transformou em licenciaturas todos os cursos de bacharelato das Universidade e reduziu de 25 mil para pouco mais de 8 mil o número de estudantes que entraram na Universidade. Penso que as dificuldades com que hoje nos defrontamos para adoptar Bolonha provêm, fundamentalmente, destas decisões . É um assunto difícil de compreender pelos que, sem se informarem sobre o que se passou antes, pretendem discutir a evolução do Ensino Superior português só a partir de 1977. Lisboa, 28 de Novembro de 2006
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