Começamos por dizer que exactamente há um ano foi apresentado no Porto, na Fundação Eng.º. António de Almeida, o livro Arsénio Mota ? 50 Anos de Escrita, onde vários escritores testemunharam o seu apreço pela obra do autor de quem hoje aqui se fala a propósito da narrativa Quase Tudo Nada, editado pela "Campo das Letras" - um livro que foi galardoado pelo Município de Cantanhede com o "Prémio Literário Carlos de Oliveira". Podemos dizer que Arsénio Mota quase sempre se tem servido da memória (ou das suas próprias vivências) para estruturar uma obra de ficção que se evidencia sobretudo nos planos humanos e sociais e num sentido claramente biográfico. Armazenando todas as vivências no museu do sótão da sua longa vida, o escritor viveu no seu tempo e quando se dispôs à escrita, começou então a sua luta, reconstruiu as suas imagens noutras imagens de um mundo interior, enfrentou os problemas que surgiram no conflito de pessoas, coisas e lugares que de súbito chegaram à superfície da memória e do tempo como forma de redenção ou mesmo de condenação. E por isso as palavras se encadearam umas nas outras, em estranha metamorfose, porque foi nesse processo que a emoção se impôs à inteligência e tudo fez caldear através de mil pormenores para construir a imagem real por fora do que foi vivo e real por dentro. E disso fala uma vez mais este novo livro de Arsénio Mota. Mas, no acto de a escrita se arvorar como a atitude primordial de expressão no que existe de mais profundo e sincero num escritor, podemos dizer que não existe um tempo natural para a realização de uma obra literária, porque um livro é sempre e acima de tudo o acto de contar uma história, que pode debruçar--se no tempo de infância, ou partir de um desgosto de amor ou ser a aventura de uma qualquer personagem, mas também se revela como forma de povoar a solidão ou desvendar as suas angústias e inquietações sentidas em relação ao mundo e ao próprio meio em que se vive. Sabemos que sempre foi assim. Ontem e hoje. E pelo acto da escrita se pode afinal reconstruir o universo de um escritor e decifrar nos livros as várias constelações ou inquirições que sempre o orientam. Mas, por ser o acto de escrever forma de conhecimento do mundo e da vida, devemos ainda repetir, ma consagrada fórmula de Sartre aplicada à literatura, que o verdadeiro sentido de uma obra se determina, pois, na atitude sempre prosseguida de se querer mostrar, demonstrar, desmistificar e dissolver todos os mitos e feitiços num banho de ácido crítico, sem perder de vista os elementos humanos e sociais com que alimenta ou consolida toda a escrita, seja de um modo explícita, directa ou não. Mas de que nos fala a narrativa Quase Tudo Nada que Arsénio Mota acaba de publicar? Pela estrutura da forma de narrar, numa linguagem equilibrada e concisa, sem grandes efeitos de escrita, o livro convida o leitor a percorrer os mesmos lugares de Tumim, a personagem criada para um certo "ajuste de contas" do narrador. Na descoberta da cidade ? o Porto dos anos sessenta de boa memória, quando Arsénio Mora nela decidiu radicar-se, com muitos sonhos e anseios, depois de uma experiência como emigrante na Venezuela. Tinha o mundo todo à sua frente e assim todo o livro atravessa, num breve itinerário reconstruído com rigor, os lugares que foram de convívio ou de trabalho, de realização pessoal ou de algum indício de desfasamento. E, nesta peregrinação feita no tempo e no espaço da cidade portuense, Tumim rememora pouco a pouco uma vida cheia de tudo e de nada, evoca um Porto hoje alterado nas suas relações de convívio e de outros interesses no confronto com os quase cinquenta anos passados, as pessoas e os seus sonhos alteraram-se no que havia de utopia ou de afirmação de outros sinais de vida muito mais humanizados e de companheirismo de todos os dias. A evocação de tantas coisas, desde o acto de nascer fora do burgo e fixar-se depois no Porto, na descoberta pessoal do jornalismo ou na experiência amarga dos meses preso na PIDE em tempos de outras clandestinidades, tudo contribui para que este livro se deva ler não pela ordem da sua paginação, mas pela clara ordenação dos próprios capítulos em que a narrativa se divide, tal como fizemos.. Mas o desencanto ou o pessimismo revelado por Tumim, ao aproximar-se a hora do seu pessoal ajuste de contas com a cidade esquiva e com as suas gentes, no acto de confessar que, olhando da janela do seu quarto, como o mundo ainda se agita, que afinal não lhe sobra muita coisa para se redimir e no passar dos dias só lhe resta ainda o prazer de reler um livro que lhe interesse e o faça uma vez mais regressar "ao mais profundo de si mesmo" e revisitar por aí, em silêncio e em solidão, o que foi o filme da sua vida. Por último, não podemos deixar de evocar o nome de Carlos de Oliveira, admirável autor de Casa na Duna ou de Uma Abelha na Chuva que nestas terras gandaresas cresceu e tão presentes estão na sua obra, que em 1973 em O Aprendiz de Feiticeiro declarou: "Nós, escritores, trabalhamos com palavras. Não nos é lícito ignorar que podem ser uma arma de força terrível ou terrivelmente frágeis, Podem apoucar as verdades ou revelar-lhes os gumes mais finos e luminosos, O nosso ofício consiste em escolher as palavras, utilizá-las no momento exacto, atenuá-las, engrandecê-las, dominá-las". Foi isso o que fez Arsénio Mota para se sentir honrado com o "Prémio Literário Carlos de Oliveira" que este livro mereceu em 2005 e cuja sessão de apresentação decorreu há dias na Biblioteca Municipal de Cantanhede..
Arsénio Mota QUASE TUDO NADA Ed. Campo das Letras - Porto, 2006.
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