Depois dos oitenta anos e como poeta de um só livro em mais de cinquenta anos, Luís Amaro, nascido em Aljustrel em 1923, acaba de reedita Diário Íntimo, um livro singular na moderna poesia portuguesa, inicialmente com o título de Dádiva (1949) e que Virgílio Ferreira pôde saudar com entusiasmo nas colunas da revista ?Vértice? e na mesma forma de saudação de Pascoaes, Sebastião da Gama. Cabral do Nascimento e outros, como agora se pode ler na ?Marginália? acrescentada nesta edição. Oriundo das terras alentejanas, Luís Amaro cedo se radicou em Lisboa, onde estabeleceu, no meio de muitos ventos e marés a que resistiu como foi possível, a sua barca de Poeta no convívio de tanta gente que, por exemplo, pôs de pé a revista Árvore (1951-53), e com regular colaboração literária em revistas e suplementos culturais. Na forma de um sincero apagamento pessoal e no contacto directo com muita gente das letras nas suas andanças editoriais desde 1942, os poemas de Luís Amaro lêem-se como o itinerário de quem se confessa ou penitencia no ritmo de uma "música vital" lírica e comovida, ou mesmo "na forma de recolhimento psicológico e intimista, quase crepuscular", de que falou Óscar Lopes, por se saber que todos os males resultam da impaciência do mundo em redor ou da doença que chega e aflige. E é desses males que a sua poesia nos fala em trajecto percorrido pelos rios e lugares que foram de dor e desolação, de espanto e receio da morte e da sofreguidão da vida, em anos tristemente vividos, talvez inúteis e sem outra alegria. E disso o Poeta se lembra: "Todo o meu ser estremece, pressentindo / A morte rondar à porta da minha alma". E, através de versos profundamente tristes, marcados por uma nostalgia que os males do mundo redescobrem, na lembrança de Nobre ou de Pascoaes perdido por outros sonhos, ganha ainda força para combater essa reserva tão amarga e solitária: "Ser forte, saber amar / Esta coisa de existir!" Mas esse tom confessional e intimista não impede que o Poeta trace assim as linhas do seu programa, para assim reinventar outra saída e debelar os seus males ou recuperar uma outra alegria: "Quando vier a tristeza, / Faz que ela tenha uma grandeza. / Quando vier a rara alegria, / Faz que ela seja pura como a luz do dia. Porque no fundo existe um convencimento "de que tudo é fictício" e não adianta contemplar o mundo calado e discreto, no silêncio das horas de enfado e abandono, no recolhimento de quem vive angustiado e intranquilo: "Até que a noite venha e eu recolha / À solidão do meu quarto. / Mãos vazias e coração intranquilo". E nesse envolvimento em que o Poeta mergulha, pelo desânimo e pela doença em horas de amargo desconsolo e pessimismo, existe ainda essa memória longínqua da infância e dos campos que "um dia pôde amar", mesmo que seja para se interrogar na distância dos anos que passaram: "Como falar dos tempos de criança, / Se nunca tive infância?" E saber todavia que é esse distanciado silêncio do seu Alentejo profundo e longínquo que não deixa de estar presente: "Desde o confins da infância / Uma sombra me espreita / E avassala meu ser, quando o silêncio / Deixa que falem as vozes mais secretas". Voz magoada e depurada no seu canto, porque, mesmo na evocação de Drummond de Andrade,, sempre Luís Amaro conheceu uma pedra no meio do caminho e disso fez o seu sincero lamento na diversidade dos caminhos, o Poeta circula à volta da sua alma e para si "a vida é este mar / De amor, ódio, desejo, / Tristeza, sonho?.E, no acto próprio de a si mesmo talvez como dádiva ou oferenda se ter silenciado há muito, Luís Amaro é um Poeta que se lê e sente com prazer, que muito nos comove na sua amarga e serena expressividade e por isso repetimos com Jorge de Sena que "a sua poesia se caracteriza por um tom muito discreto e angustiado, que não chega ao confessionalismo e se mantém numa pessoal reserva quase solipsista e desencantada, em que a amargura de um ser isolado encontra notas muito puras, de uma bela musicalidade íntima".
LUIS AMARO Diário Íntimo, Poemas Ed. & etc. - Lisboa, 2006
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