Página  >  Edições  >  N.º 160  >  Fernando Miguel Bernardes ou a poesia como metáfora

Fernando Miguel Bernardes ou a poesia como metáfora

Na leitura deste novo livro de Fernando Miguel Bernardes, podemos lembrar uma vez mais como os poetas quase sempre se ergueram como vozes de resistência ou de protesto nos longos anos de pesadelo e desastre moral nas vagas fascizantes que varreram a Europa e mais perto de nós as terras e gentes do Médio Oriente. E apenas não guarda disso boa memória quem não teve nunca de vigiar e policiar o seu discurso, atenuar em zonas de expressiva nebulosidade o que desejava dizer de forma clara e aberta, soltando aos quatro ventos as palavras que pudessem escapar a outros olhares vigilantes e perseguidores. Nos anos de fascismo em Portugal, um pouco por toda parte, foram bem limitados os horizontes de diálogo e afirmação e como ruíram por completo os sonhos da esperança e da utopia. Mas quando Abril chegou, na revoada de cravos e clamores pelas ruas e cidades, de um a outro extremo desta faixa continental, o que mais se ansiava era que de facto se renovasse em sinceridade esse discurso tão geral, renová-lo não somente pela mudança de atitude, revelada nos sinais de identidade, e antes pela posição firme de se desanuviar o quotidiano, ?repensar o País?, dizia-se, eliminar a nossa atávica mentalidade fradesca consolidada em cinquenta anos de fascismo. E, nesse diálogo renovado com os poetas, a cada instante retomamos o prazer de ser legítima a utopia que perseguem ou ainda o desejo revivido de entender a poesia como uma metáfora de vivências e sinais que nos definem como povo. Não como forma de interpelar o mundo ou fazê-lo entender nas margens dessa utopia, mas ainda no gosto próprio de desvendar o outro sentido de ser visível ?o que no invisível se vê?, como dizia Pessoa. Ou ainda em sua lembrança atingir esse propósito de ser legítimo compreender uma certa ?desordem posta na ordem?.
Dedicado à memória de Fernando Lopes Graça, de quem em 2006 se deve (ou devia) celebrar o centenário do seu nascimento, Meseta Sul é, no fim de contas, uma forma de homenagem sincera e sentida por parte de um poeta que, como ?companheiro? de sonhos e aventuras, assume a palavra poética como a atitude objectiva de retratar os sinais mais visíveis da nossa identidade geográfica, cultural e humana (?Ardidos/do astro/a pino/meseta ibérica/duro chão/alpino?), Na forma contida e breve como estrutura os 34 poemas deste livro, Fernando Miguel Bernardes sabe em consciência que a palavra é o modo de metamorfosear a realidade e definir os marcos que ficaram pelo caminho: ?Ao romper/de alva/recolhe à sua alcova/o marialva?. Ou ainda toda a história assumida e interpretada nas pegadas da sua peregrinação e mesmo como retrato geográfico, nada iberista, de nos sabermos um povo de heróis adiados: ?Nem gregos/nem troianos/a esquiva/sombra de enganos/o herói/o hiato//o ferro(de viriato?. E, recuando mais no tempo, nas sombras e fantasmas que de tantos medos e aventuras nos ficaram, dizer-se ainda que ?Da índia a canela/e o cravo/as áfricas/o escravo/A riqueza fátua/etérea/ real a milenar/miséria?.
Podíamos não parar por aqui e dar mais exemplos de como o autor de ?Docas Secas? desdobra e consolida a sua demorada metáfora em redor da nossa condição de povo ibérico. Mas o que dizemos parece ser suficiente para afirmar, sem muita originalidade, que os poemas de Meseta Sul revelam em clareza a posição literária e poética de Fernando Miguel Bernardes que, na diversidade da obra até hoje publicada (histórias para crianças, conto, romance, poesia e vários textos de intervenção política e cultural), tem dado um contributo próprio para engrossar a corrente de autores que procuram interpretar ou desvendar as realidades da vida e do mundo. Ainda e sempre na memória de Carlos  Queiroz, um poeta hoje tão esquecido, que não deixou de clamar:

Só fazemos bem
Torres de Belém?.

Fernando Miguel Bernardes
MESETA SUL, poemas
Prefácio de José Ribeiro Ferreira
Ed. Minerva Coimbra, 2006.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 160
Ano 15, Outubro 2006

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo