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Bem e mal-amados materiais didacticos

Esta é uma relação ambivalente que oscila na tensão entre usar, criticar e produzir materiais didáticos. A professora recém-formada, por exemplo, tende a confiar no material didático que lhe garante um mínimo de estabilidade  em meio às turbulências do cotidiano. Ao  refrão ?abre o livro na página tal? a turma se ocupa e se cala. O que se deve fazer está dado nas ordens comando que determinam o  rumo, a despeito de quem sejam participantes e de que outros cotidianos vivam fora da escola.
Entre presentes e ausentes, porém,  notam-se diferentes indícios que vão do enjôo à rebeldia, da adaptação à deserção. Como não ver aqueles olhos perdidos, aqueles espíritos rebeldes que se ausentam dos corpos docilizados? Como não ver, até doer, os  sinais de  resistência que, não raro, descambam em violência? Como ser insensível à pouca  sintonia com os mais apáticos e distraídos? Eis que a coceira  da dúvida começa a despertar a crítica. Será bom o roteiro? Estará sendo bem explorado? Que novas experiências   incluir?
Quando a crítica das professoras sobe de tom,  acionando a busca, ampliam-se as conversas e as trocas. Importa descobrir um jeito que faça diferença, que acorde a turma e acenda o brilho do olhar. A essa altura já se percebe uma certa nostalgia  do fazer pedagógico artesanal  de outrora, quando,  com autonomia e alguma arte, cabia a mestres se responsabilizar integralmente por suas aulas. Suspeito que o velho modelo da escola-indústria-fordista,  referendado pela indústria do livro didático, reforçado pelas muitas jornadas e salários baixos, não resulte da opção, mas da falta dela. Não por acaso, muitas professoras se referem aos materiais didáticos como um mal necessário.
Vale ressaltar que a tensão entre permanência e mudança manifesta-se em qualquer cultura. Mesmo que predomine a conservação na cultura escolar, professoras buscam novidades e a partir de uma rede de conversas, colhem idéias que lhes pareçam promissoras, imprimindo-lhes marcas e reinvenções cotidianas. Muitas passam da adoção à crítica, chegando à produção de materiais didáticos, embora poucas  cheguem a subverter o modelo.
Como professora universitária e pesquisadora, meu interesse por materiais didáticos vem do tempo em que vivia a tensão entre o uso, a crítica e produção de materiais nas salas de aula do 1º.  grau. Anos de estudo e pesquisa depois, defendo  a hipótese de  que materiais didáticos constituam uma matriz invisível na formação docente. Tal matriz  ideológica, tanto reproduz a   cultura escolar como é  produto dela. E, sobretudo, dissemina-se pelo uso, informando, subliminarmente, o papel de cada sujeito: o de produtor, o de transmissor e o de consumidor do conhecimento. Na contramão desse processo, tem-se praticado a formação continuada de professores,  a socialização da  teoria e a crítica a materiais didáticos reprodutores  e homogeneizadores, instrumentos que são de uma pedagogia bancária, como denuncia Paulo Freire. Ainda assim, persiste o desafio da articulação prática-teoria-prática. Como conseqüência, não raro, a teoria simplificada vira jargão, enquanto  a prática segue reproduzindo o velho modelo.
Em face disso, entendo necessário enfrentar o desafio de  produzir  materiais didáticos instituintes, capazes de contribuir para a reinvenção de uma  pedagogia dialógica, criativa e artesã. Operacionalizar tal desafio é andar no fio da navalha entre conservação e mudança. Se radical, a mudança se arrisca a ir de encontro às crenças docentes; se paliativa, apenas confirma a cultura escolar. Uma terceira via possível surge se e quando os materiais se tornam provocadores da ousadia, e as professoras vêem  o quanto elas podem e o quanto podem as crianças, sob o apanágio do humano: o poder de se espantar, investigar e criar.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 160
Ano 15, Outubro 2006

Autoria:

Edwiges Zaccur
Univ. Federal Fluminense, Brasil
Edwiges Zaccur
Univ. Federal Fluminense, Brasil

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