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Qualquer pessoa se pode enganar, diz Chveik

Eu creio ? alvitrou Chveik ? que na vida é pre­ciso ser-se justo. Qualquer pessoa se pode enganar, e, quanto mais se pensa nas coisas, mais uma criatura se engana. Os psicólogos são pessoas como nós e tão falíveis como nós, enganam-se.
Uma vez, era meia-noite, regressava a casa ? levei o meu passeio até ao café Banzet ? quando, subitamente, por alturas da ponte que atravessa o Botic em Nusle, me apareceu um cavalheiro que com uma cacetada pregou comigo no chão. Em seguida tirou uma lanterna de algibeira, iluminou-me o rosto e disse: «Enganei-me mais uma vez, não é ele!» E ficou de tão mau humor pelo equivoco que me pespegou ainda outra cacetada nas costas. Mas é a índole dos homens: enganam-se enquanto vivem!
Existiu em tempos um cavalheiro que encon­trou de noite um cão enraivecido e morto de frio. Tomou-o amorosamente nos braços e, chegado a casa, meteu-o na cama onde dormia a mulher, para aquecer um pouco o pobre animal! Claro, assim que o cão se reanimou e pôde suster-se nas patas, come­çou a morder em tudo quanto encontrou até se fartar. Toda a família do cavalheiro foi mordida, inclusive a criança que dormia no berço, de quem a imunda fera enraivecida não dei­xou nada.
Posso ainda contar-lhes uma história passada com um torneiro mecânico. Esse indivíduo, julgando encontrar-se diante da porta da casa em que vivia, abriu com a chave a porta da capela de Podol. Tirou os sapatos e, confundindo o altar com o seu leito, deitou-se em cima. Cobriu-se com um estandarte e toalhas de altar e, como travesseiro, serviu-se do Evangelho e ainda de outros livros santos, visto gostar de ter a cabeça alta. O sacristão pela manhã encontrou-o ali e acor­dou-o. O torneiro não compreendia nada do que se passava e, quando reconheceu que era ele, disse ao sacristão que se enganara, fora certamente um equivoco. Estão a ouvir a res­posta, hem? «Um equívoco!», retorquiu-lhe o sacristão. «E, agora, vai ser necessário consagrar mais uma vez a ca­pela! Vai-te embora, grande porco!»  Está bem de ver que este torneiro não escapou aos psicólogos. Eles provaram­ que «agira com discernimento» e que «não estava em completo estado de bebedeira», como pretendia, tanto assim que encontrara facilmente a fechadura. O desgraçado do tor­neiro morreu numa enxovia na prisão de Pankrac.
Vejamos, se vocês quiserem, ainda um outro exemplo. Havia outrora, em Kladno, um chefe de esquadra que amestrava cães-policias e os exer­citava fazendo-os perseguir desgraçados ferroviários, de tal maneira que, no fim de contas, já não havia nenhum ferroviário na região. Mas como o chefe necessitava de gente para as suas experiên­cias, ordenou que lhe trouxessem, custasse o que custasse, um indivíduo de aspecto duvidoso. Aconteceu levarem-lhe um homem bastante bem vestido que encontraram a descansar no tronco de uma arvore no bosque de Lany. O chefe mandou cor­tar um pedaço ao casaco do homem, deu-o a cheirar aos cães-policias da esquadra e, por fim, levaram-no para um telheiro onde soltaram os cães na sua cola. Como era de prever, o homem foi perseguido, e obrigaram-no a subir a uma escada, a saltar uma parede, a lançar-se a um lago, sempre com os cães atrás dele. Finalmente, descobriu-se que se tratava de um deputado conservador checo que se acolhera à sombra do bosque de Lany, visto aborrecer-se muito no Parlamento. Aqui têm! É por isso que eu digo sempre que os homens são todos falíveis, que toda a gente pode enganar-se, seja sábio ou ignorante, espertalhão ou pateta. Até os ministros se enganam.

(Jaroslav Hasek, O valente soldado Chveik)
Arranjo e adaptação: José Paulo Serralheiro


  
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Edição:

N.º 156
Ano 15, Maio 2006

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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