Era um dia perfeitamente normal. Sexta-feira, fim de tarde solarengo. E daí, talvez fosse anormal, tanto sol em pleno Inverno. Bernardo estava sentado no seu escritório, o de administrador do hospital. O trabalho extra acumulado durante a semana estava à espera de ser despachado para não ficar pendente até segunda. Mas talvez não fosse normal tanto papel para um só gestor. Embora o ordenado tivesse peso de chumbo, não pesava o suficiente para contrabalançar o prato das saídas adiadas para dias melhores, esses em que estivesse mais livre. Talvez fosse o sol a entrar pela janela do escritório. Ou a mosca pousada no teclado, Bernardo deu por si a pensar que estava demasiado atarefado para tirar o máximo rendimento possível da sua capacidade de vida instalada. Estava ocupado nestas considerações, perfeitamente anormais para si mesmo, quando a sua secretária lhe bateu à porta. Normalmente limitava-se a pousar os dossiers, mas desta vez algo a preocupou: ?O senhor administrador sente-se bem?? Sem tirar os olhos do computador, Bernardo acenou que sim. Estranhamente, esse movimento de cabeça fê-lo dar-se conta da pressão enorme que sentia na zona do parietal superior. Arrastou a cadeira para se levantar e quando o fez sentiu uma vertigem. Instigado pela secretária, dirigiu-se às urgências do seu hospital, algo que nunca lhe acontecera pois sabia muito bem o elevado custo de um utente atendido em tal serviço. Para que não constasse que usava de privilégios, algo que sabia lhe seria, com certeza, lembrado numa de tantas greves que o pessoal médico e de enfermagem normalmente fazia, o administrador saiu do edifício e entrou normalmente como qualquer utente nas urgências. Queixou-se da dor na cabeça, do atordoamento e de ter os batimentos cardíacos um pouco acelerados. Puseram-lhe uma pulseira amarela. Três horas depois foi chamado. Bernardo tinha passado o tempo a contabilizar os utentes com pulseiras verdes e azuis e a fazer contas aos custos destas falsas urgências. Com um simples cálculo de prospecção, tinha chegado à conclusão que bastaria o reencaminhamento destes utentes para o centro de saúde para diminuir em 1 por cento as eventuais despesas em exames de rotina para diagnosticar a doença que não existia. Entrou para o consultório. A médica fitou-o indignada. ?Acha que a sua dor de cabeça justifica uma vinda ao hospital?? A pergunta deixara-o assarapantado. Como administrador, sentiu que devia apontar o nome da médica para a elogiar pelo discurso desencorajador do recurso àquele serviço. Como utente, teve vontade de berrar àquela senhora antipática que não subvalorizasse a sua dor, pois era da sua cabeça que dependia toda a gestão hospitalar e inclusive o seu bom ordenado. Não o fez por medo de ser reconhecido. Pensou que seria submetido a uma TAC, mas limitaram-se a medir-lhe as tensões. ?O senhor enervou-se antes de vir às urgências??, perguntou a médica ao verificar que Bernardo tinha as pulsações muito acima do normal. ?Não?, respondeu. ?Está com algum problema?? insistiu. Problemas não faltavam naquele hospital e ele ali a perder o seu precioso tempo, pago a peso de chumbo. Ainda assim, a sua resposta continuou a ser negativa. Então, a médica voltou ao ataque: ?Não tenha receio em admitir que alguma coisa o perturba!? Desta vez com sucesso. Bernardo começou a chorar. Algo nada normal. Mas daí, talvez fosse daquele tom mais maternal de voz, ou da lembrança de que o fim-de-semana seria passado a acabar o benchmarking que iria justificar o encerramento de mais dois serviços hospitalares. Por suspeitar estar perante uma caso de depressão major, a médica achou por bem encaminhar Bernardo para o serviço de psiquiatria, uma vez que o de psicologia tinha sido encerrado para contenção de custos. Bernardo ficou pouco convencido da eficácia do diagnóstico. Afinal andava apenas stressado e era perfeitamente normal que assim estivesse. Mas deixou-se conduzir por uma voluntária do hospital até a um corredor a cheirar a um não sei quê de higiene que achou normal, mas o fez sentir indisposto. ?Sente-se?, disse a voluntária apontando para um banco onde estava sentada uma mulher com muito mau aspecto a fazer malha. ?Obrigado, fico bem em pé!?, retorquiu Bernardo que não pudera deixar de reparar no longo cordão tricotado amontoado no chão. ?Não têm mais que fazer, vêm passear para as urgências!?, diziam entre si dois médicos. Sem que nada o fizesse prever, uma mulher, que dormitava numa cadeira de rodas e cuja aparência era bastante normal, começou alegremente a cantar o que pareciam ser hinos religiosos. ?Louvado seja o servo do Senhor quem o seguir será abençoado?? A cantoria deixara Bernardo inquieto, mas pior impacto teria na outra mulher que, pousando as agulhas no banco, desatara a insultar a cantora. ?Cala-te, filha da puta!? Era o fim da pouca normalidade. Alguém troçou: ?A Primavera chegou mais cedo!? Mas ninguém veio acalmar os ânimos. ?Quem manda calar uma serva de Deus??, inquiriu a mulher e continuou a cantar. ?Cala-te!?, ordenava a outra enquanto rematava o cordão e o guardava num saco plástico juntamente com muitos outros. Ocorreu a Bernardo que cada fio representasse uma ida às urgências. O corredor acalmou quando um auxiliar veio buscar a crente. A mulher da malha voltara à normalidade do seu tricotar compulsivo. E Bernardo respirara fundo, na tentativa de desacelerar os seus batimentos. Até que chegou a sua vez. ?Sente-se?, pediu a psiquiatra com um sorriso. Bernardo acedeu. Lá fora, sentira uma absoluta necessidade de se fazer distinguir das outras duas: ?Os mentalmente perturbados estão sentados, os sãos estão de pé??, repetira vezes sem conta. Sentado, a distinção tornara-se menos clara. A psiquiatra olhava-o profundamente. ?Consegue dizer-me por que está tão nervoso?? Talvez fosse dos cânticos, ou os cordões, ou as contas sobre os custos das ?falsas urgências?, Bernardo só conseguiu chorar. ?Você tem um problema!?, confrontou-o a psiquiatra. O sim surgiu com o abanar da cabeça. Estava convencido. Tinha de facto um problema, apenas não sabia qual.
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